Finda a apuração do primeiro turno das eleições para presidente, no domingo, fomos tomados por um clima nada ameno no mundo virtual. Como tenho reparado, o mundo real – com o qual sempre tive uma relação difícil – anda bem mais agradável do que o virtual. Foi questão de segundos para começar uma enxurrada de podridões de ambos os lados – posto que foi decidido que há lados na politicagem, segundo os ingênuos eleitores. Contudo, não escrevo hoje para falar de campanha e eleições. Quero apenas comentar o que, dentre toda a falta de argumentos que tenho observado, me chamou a atenção.
Uma pessoa, considerava amiga até, postou vários posts contra um dos candidatos (ela que mal aparece no Facebook) com insultos e uma agressividade que me assustou. A base dos textos era a ignorância e a falta de razão (no sentido de raciocínio, não de “estar com a razão”) do outro, um “o que você, que vota em fulano, tem na cabeça”, ou “quem pensa, quem tem o mínimo disso ou daquilo não vota em fulano”. Naquele momento fiquei de fato surpresa. Então eu, que não tinha votado na mesma pessoa que ela, era irracional, burra, estúpida. E não é que isto foi e tem sido usado por ambos os “lados” desde então? Mais ou menos assim: você vota em quem eu voto, então você é inteligente, pensa, percebe as coisas do mundo e é um poço de boas informações; se não, você é burro, mal-informado, idiota, cego, apesar dos diplomas e tal, não percebe nada!
Talvez me sinta superior demais a alguém que se restringe a dizer uma coisa dessas. Talvez eu tenha me sentido acuada por tal nível de acusações e despautério. Me silenciei. Tenho visto e lido coisas, de ambos os “lados”, que analiso, penso, reflito, tento, principalmente, identificar a origem aqui com meus botões e minhas teorias. Em particular, tenho até discutido. Mas só. Internet é esfera pública, melhor manter-se moderadamente afastada. Por isso, não vou nem comentar o que penso sobre o que está acontecendo – e sobre o que penso das pessoas nestas circunstâncias.
Dias antes estava pensando sobre uma idéia que aprendi num livro. Ler livros é melhor do que ler as TLs alheias. Livros mudam a minha vida, idéias me apaixonam. Livros mudam a minha percepção do mundo. Pensei até em escrever este texto para o dia dos professores, pois o autor que quero citar aqui foi-me apresentado pelo estimado e adorável professor Lupi, o melhor dos melhores. Livros têm esta capacidade, como algumas poucas pessoas, de entrar na vida da gente, mexer com pensamentos e sentimentos, destrancar portas e escancarar janelas. Estou, há uns três dias, lendo um que faz, novamente, esta reviravolta na minha vida. Não são todos, por isso é preciso ler sempre, para encontrá-los.
Professor Lupi um belo dia nos passou Mircea Eliade para ler. Historiador das religiões, Mircea é um querido. Não, não o conheço, digo isso só pelas idéias dele. Tínhamos que ler o Tratado de História das Religiões. E eu sempre fui apaixonada por religiões, amava Lupi (o único professor que disse que eu era uma boa aluna!), amava as aulas maravilhosas e perfeitas dele e na época eu estudava pacas. Fui ler com uma gana sem igual. Era uma época que, sendo das mais difíceis em tantos aspectos, eu vivia inimaginavelmente muito feliz.
Cheguei onde queria, porque não vim falar, falar e não dizer nada nem dar aula sobre coisa alguma. Há uma consideração do Mircea à qual eu já voltei tantas vezes: como nós renegamos tanto a nossa condição animal, suplantando-a pela nossa capacidade racional. Segundo ele, o homem moderno, diferente do homem arcaico, é incapaz de viver sua vida orgânica. Com vida orgânica ele se refere diretamente à sexualidade e à nutrição. O homem moderno abraçou de tal forma a razão que esconde (literalmente, como nos mostra a História dos Costumes) seu funcionamento orgânico. Ele aponta que a sexualidade e a nutrição foram vivenciados como sacramentos por culturas anteriores. Em termos teóricos ele julga que a psicanálise e o materialismo histórico é que foram os responsáveis por desmerecer e até ignorar a sexualidade e a nutrição como sacramentos.
“Para o moderno não passam de atos fisiológicos, ao passo que para o homem das culturas arcaicas são sacramentos, cerimônias por cujo intermédio se comunica com a força que representa a própria vida.” como não concordar que a sexualidade e a nutrição nos ligam diretamente com a vida? Sendo um homem moderno! Então devo ser uma mulher muito arcaica. A sexualidade e a nutrição são duas (das quatro) coisas que fazem eu me sentir viva, literalmente. São momentos cerimoniais, concordo plenamente, durante os quais sentimos a vida. O homem moderno, porém, carece de sentir-se vivo, como é fácil observar por aí.
Assim, me sinto muito estranha quando pessoas proclamam tanta racionalidade. Eu gosto muito de animais. Já faz um tempo adotei a prática (acho até que já contei isso aqui) de não chamar as pessoas e seus “problemas” por nomes de animais – porco, anta, cachorro, vocês sabem. Dou adjetivos que qualifiquem qualidades e defeitos das pessoas, não xingo os coitados dos animais. A idéia do Mircea já vivia incubada lá nos meus delírios adolescentes com “Invejo os bichos Invejo os bichos Que só brigam por comida e sexo” (thanks, Barão Vermelho!). Os homens arcaicos viviam mais próximos (proximidade física, não em evolução) dos animais, os conheciam e observavam – e não era através da tela da TV no Discovery. A proximidade com os animais permitia que eles desenvolvessem uma relação mais respeitosa e inteligente com o que podiam aprender. Eu aprendo (e muito!) com os bichos.
Sexo ser usado para, sei lá, contar vantagem de quantas pegou na balada, para subjugar pessoas que lhe são, de alguma forma, inferiores, e tantas outras formas torpes é coisa do homem moderno. Os arcaicos vêem o óbvio, a reprodução (consequência) e o prazer (como consequência imediata) – uma bela cerimônia com a vida. Alimentar-se pra postar foto na internet, pra fazer check-in e todo mundo saber que você foi no lugar mais top (HAHAHA) ou caro da cidade, pra mostrar como você é saudável ou que tuas escolhas políticas coincidem com tua alimentação é coisa do homem moderno. O homem arcaico come porque disso depende sua vida e eis mais uma cerimônia prazerosa. Eu sou tão arcaica que gosto de todo o ritual de escolher, preparar, arrumar a mesa, servir, comer com quem compartilha do mesmo prazer, e é uma das minhas cerimônias preferidas – não gosto de comer sozinha e tem que ser um momento único e ponto. Até tenho esse sentimento de disputa com os outros em relação à comida, nada mais arcaico!
Os racionais homens modernos extinguiram o prazer – e abrigam-se em pseudo-prazeres muito estranhos, como, sei lá, possuir bens e guardar dinheiro, coisas que em nada nos ligam à força da vida. Procuraram submeter a sexualidade e a nutrição às leis, às regras rapidamente mutáveis do tempo das sociedades, ao nosso mundo obscuro, aos eternos tabus. Quer algo mais moderno do que os tabus? Assim, sentem-se suprassumos detentores da razão – sim, porque, pelo visto, só há uma.
Mircea acrescenta a dimensão de conexão com a realidade que há entre o sentir a força da vida que o aproxima do existir como ser (numa perspectiva ôntica como se diz nos termos da Filosofia, que é o estudo do ser) e o liberta dos automatismos da vida, que são as coisas sem sentido e sem conteúdo. E eu me pergunto, quantas coisas o homem moderno faz que são esvaziadas de sentido e conteúdo? Tão praticantes dos automatismos, detentores da razão que fazem mau uso da sexualidade (sua e da dos outros) e da nutrição, o que são os seres modernos? Seres que, inclusive, desprezam quem procura praticar sacramentos que os liguem à vida. Os sacramentos, como estudados pela História da Religião, são muito antigos, Mircea faz várias preleções sobre eles e não se originaram só nas religiões que a gente conhece. São praticados pela humanidade, como citei, na busca pela comunhão com a vida. E seres racionais, é claro, não precisam disso.
Sinto-me tão próxima do homem arcaico e dos animais. Sinto-me em boa companhia. Não quero parecer contraditória, pois afirmei que gosto de idéias e elas pertencem ao campo da razão. A questão é pesar, é não tirar o espaço de uma pelo da outra. Segundo as publicações de milhões de brasileiros, como eu não voto como eles eu sou estúpida, indigente intelectualmente. Como tendo a ser querida comigo mesma, vejo que procuro usar a razão sem fazer disso o que me diferencia dos outros seres racionais. E voltei ao Mircea para não esquecer que somos, antes de tudo, animais. Do nosso organismo é que depende a nossa vida, sem sexualidade e sem nutrição o ser humano deixará de existir – e diante disso de nada adianta ser o mais racional dos racionais, sorry.
Sou uma pessoa altamente religiosa. Pratico ritos, sacramentos e cerimônias. Tenho minhas quatro relações com o sentir-se viva. Gosto de pessoas religiosas que buscam a ligação com a vida. Acredito que não me dou muito bem com os homens modernos. Parece, também, que não sou tão racional quanto meus amigos. Ainda bem.
Diria Aristóteles, ou mesmo o meu horóscopo de hoje, que o acertado é a justa medida. É o que eu busco, apesar de ser tão dada aos exageros – principalmente em alguns sacramentos, porque sentir-se viva é tão bom que não dá vontade de parar. Mas exagerar na razão eu pratico só ocasionalmente.
Deixe um comentário