Instruções para o bem acordar

Pule da cama. Mas que seja antes do sol nascer. Contra todos os conselhos dos ortopedistas, pule num salto perfeito ou desajeitado, tanto faz, mas pule. Sorria. Veja que acordou cercado por quem ama – e que te ama também. Jogue o edredom para o lado. Dê os breves adeus matutinos. Vá até o jardim, mate um pernilongo. Ouça os sons aterradores do que se passa lá longe pois aqui nem os passarinhos acordaram. Num impulso – nada mais que um impulso – tire a camisola, coloque o primeiro vestido leve que você encontrar no escuro, pegue a câmera fotográfica e vá ver o sol nascer – tamborilando mentalmente aquele verso teu velho conhecido e protagonista de tantas risadas: “hoje eu acordei querendo ver o mar”. Caminhe com uma dose de ansiedade, não querendo perder a hora exata dele nascer, mas sem relógio, nem celular, nem app para dizer se você está atrasada. Saia sem lavar o rosto. O cabelo? Passe a mão de leve naquele redemoinho que você conhece bem e continue caminhando. Escova pra quê? A chave da casa na mão direita, a câmera no ombro – e nada além de um vestido e um chinelo de dedo. Sem escovar os dentes, é claro. Sem ter tomado aquele copo de água irrepreensível de todos os despertares. Caminhe pensando em nada, repare em como a rua principal está vazia, em como as luzes dos postes ainda estão acesas. Suba um morro, dois morros. Pense em coisas desconexas como quem folheia um livro do qual já sabe o enredo mas pouco interessam as cenas. Sinta o conforto das coisas que conhecemos tão bem e das quais nos afastamos por um tempo, só para voltar a vê-las todas no mesmo lugar e do mesmo jeito. E então pare lá no alto e… veja o mar. Sorria. Repare no quadro pronto, todos os elementos tão perfeitamente dispostos. Não é preciso muito, tire a câmera e fotografe. Por quê? Porque é preciso alimentar a alma. Trata-se disso: acorde e vá alimentar a alma, sem ter alimentado o corpo, nem a vaidade, nem os sentimentos, nem as tristezas, nem os remorsos. E porque você acredita que as coisas estarão sempre ali esperando por você, mas o mundo pode, em algum momento, não se importar com as coisas que lhe são caras. E aí, ao menos, você talvez tenha as fotografias para sorrir num dia distante. Deixe-se contemplar o mar calmo na maré alta, repare nos postes à beira-mar que não estavam ali da última vez, sorria para aquela ponta com pedras onde você sempre foi feliz, estenda o olhar para aqueles morros ao longo de quilômetros, morros e mar, que fazem parte da tua vida. Todo aquele mundo é seu – sendo você dele. “Eu vim correndo na frente do sol” mas não pare ali a rever a vida inteira. Jogue a vida inteira do alto do morro naquele mar que de tão manso, certeza tão traiçoeiro. Desça uns degraus e sente. Agora perceba aquilo que não é óbvio no quadro. Busque o que outros olhos não veriam. Repare nas cores. Ah! As cores! As cores recém-descobertas dos amanheceres. De toda vida, pense somente no ano que findou há pouco, quando você viu mais o sol nascer do que se pôr. A amante do pôr-do-sol agora o trai com o nascer. E vivem todos felizes. Sorria ao ver aqueles barcos de pesca a cruzarem lentamente o mar, divirta-se com a idéia de pedir a um deles que te leve lá longe para ver mais de perto o sol, algum dia, nascer. Se não fosse hoje, você xingaria o fio de luz dos novos postes que agora te atrapalham as boas fotografias. Mas, hoje, você vai fotografar aquele passarinho com a minhoca de café-da-manhã contra o vermelhão de um sol que começa a gritar. Busque, sempre, aquilo que parece estar oculto aos olhos, aquilo que olhos ligeiros nunca veriam, aquilo que quem ali passa todo dia jamais teria percebido. Descubra como olhar o que qualquer um diria que é tão belo. Cartões de memória gigantes são para isso. Sentada ali no degrau, frisa fresca, mato alto, mar ao pés. Sorria. E então fotografe cada segundo do sol que se anuncia. Não há nada tão belo que não possa ficar ainda mais. A beleza da natureza é a única que sempre se supera. O sol veio, as nuvens protagonizaram belezas sem fim, o mar nunca lhe deixará viver sem ele. Sorria. E caminhe de volta cumprimentando os quatro gatos da senhora que mora na casa branca com azul. Desça os morros, abra o portão, deite-se e fique a pensar naquele amor que foi tão lindo e acabou-se – e em como fazia tanto tempo que você não pensava nele – no frescor que entra pela veneziana, em como os peludos dormem tranquilamente na cama ao lado. Pense na vida, coisa boa ou ruim, pouco importa pois um sono leve lhe toma e os sonhos desencontrados de nada valerão. Alimente os desejos do corpo – sempre depois dos da alma. Levante de novo! Deixe a cama desarrumada, abra portas, janelas, solte os peludos, sorria, coloque a gaiola para fora. Sorria ao ver o varal cheio de roupas encharcadas – pois você saiu ontem à noite e deixou-as ao léu, e voltou só depois do temporal. Lembre como o céu tem te dado tantas belezas. Coloque um disco na vitrola. Faça um nescau gelado – alimentar o corpo, nunca esqueça. Deixa a lata fora do armário, deixe as portas dos armários abertas. Passe as fotos para o computador e por onde for passando deixe tudo fora do lugar: a escrivaninha, o sofá – aquele que você, em qualquer outro dia, aos berros xinga quem deixou desarrumado – a mesa da cozinha, os quartos alheios, o banheiro. Não coloque nada no lugar! Enquanto isso, pense no que você teria para fazer hoje e, sorrindo, decida deixar tudo para amanhã. Tudo! Invente coisas para fazer hoje – mas só aquelas que você não precisa ou nem deve fazer. Liste: fazer alguma receita com o siri da geladeira, mandar uma mensagem avisando que aqueles filmes que queremos assistir acabaram de chegar – que as coisas feitas em companhia têm um gosto diferente -, lembrar de baixar os episódios do Poirot, trocar o colchão, ir à praia à tarde, telefonar para quem precisa ouvir tua voz hoje. Desista de pensar nas pessoas ruins: hoje nada vai lhe apagar o sorriso do rosto que, você reparou agora no espelho, tem o traçado da boca um pouco torto. Não faça nada pela manhã, deixe tudo para o resto do dia. Jogue umas roupas na máquina, deixe as molhadas no varal, sim, de propósito, observe os peludos, dê um galho verde para o passarinho, coloque a rede na varanda, procure a sombra. E sorria. Veja qual o santo do dia, qual o melhor dia da semana para pescar. Pegue o livro de receitas daquele cozinheiro que você é fã, sente onde o vento bate mais forte. Sorria. E deixe a vida vir como quem foi ver o mar.

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