É impossível obrigar alguém a amar outro. Impossível. Amar não lhe dá o direito de ser amado. Simples assim. Tantas são as artimanhas, os jogos, as falas, os anúncios que, porém, tentam ter para si o amor do ser supostamente amado.
Talvez eu quisesse falar do machismo. Talvez eu quisesse falar da violência. Ao pensar sobre o peso que é ser amado, eu chegaria fatalmente a ambos. Eu escrevi, ano retrasado, sobre preferir saber que se é amado. Pois não sei – e já naqueles tempos não me declarei, como, aliás, não tenho o costume de fazer. Declarar-se a alguém é colocar um peso, uma responsabilidade sobre o outro. Eu, porém, hoje sei que não sou em nada responsável, nem culpada, nem devo carregar como um fardo o fato de alguém ter se apaixonado por mim. Falei em culpa, sim, porque é como muitos tentam fazer com que o ser amado se sinta – e assim submeter-se àquele amor.
Eu fui conhecer o machismo a pouco tempo atrás, vendo em algumas famílias, em alguns relacionamentos. Na minha família eu não via isso. O senso de igualdade entre homens e mulheres, pra mim, sempre foi natural. Também não faz muito tempo eu conheci a violência que decorre do machismo – e do que alguns ignóbeis chamam de amor. Não, não pensem na obviedade da violência no sentido de agressão, tapa na cara, essas coisas. São agressões muito piores, são cicatrizes que perduram, são manipulações psicológicas mais profundas.
Eu não sei se algumas pessoas são tão maltratadas por aí que ao se deparar com alguém que as trate bem, com educação, cortesia, amizade, já desenvolvem um afeto imediato que costuma explodir num “estou apaixonado” inconsequente. Eu trato bem algumas pessoas, esporadicamente sou simpática, sou educada, gosto de ter amigos e são sempre especiais pra mim. Acontece que isso tudo é facilmente estragado por alguma declaração infeliz. E aí o cara se declara pra você e acha natural e obrigatório que você sinta exatamente o mesmo por ele – e normalmente não descansará enquanto isso não acontecer. Generalizar é a saída mais tranquila ao escrever, por isso posso dizer “os homens são assim”, sendo que há exceções (cada vez mais raras?) – mas enquanto a maioria ruim andar por aí a agir das piores maneiras, os poucos bons serão colocados na mesma classe.
Quando escrevi sobre o “declarar-se ou não, eis a questão” eu pensava justamente no peso absurdo que eu depositaria nos ombros do ser que eu amava. Pensava na situação, dele e minha, e em como eu complicaria tudo – no fim, nem precisei dizer porque, vejam só, há coisas que não precisam ser ditas. Se eu tivesse feito isso, teria rompido coisas tão boas. Teria perdido muito. Ah, Fahya, mas é um risco que se corre. Beleza, eu sou caxias, não corro riscos. Talvez as declarações só devam chegar às palavras quando já foram devidamente ditas de todas as outras formas. Tudo isso é fruto do meu romantismo, é claro. O que eu vejo acontecer não é bem assim.
Cedo descobri que declarar-se a um homem tem um efeito inerente a todos: massagear o ego. Me declarei somente para a primeira paixãozinha infantil. Depois nunca mais. Não sei o que fazem com a criação desses meninos que tornam-se homens tão idiotas. Meninos são criados – pelas mães, inclusive – para serem os melhores, os bons, os donos mandões de tudo, os machos, os predadores, os sedutores, os que conseguem tudo o que querem. Enquanto não temos educados nossas meninas para dizerem “não”, para terem noção das suas escolhas e dos seus desejos, consciência dos seus princípios e limites – mas elas andam por aí acreditando o contrário. E os meninos tornam-se rapazes e homens que seguem com a certeza que suas paixões, seus amores, tudo será imposto pela sua vontade. E as meninas estão aí apaixonadinhas sem nem saberem direito como e porque, submissas, violentadas de tantas formas, calando traumas que as perseguirão por toda vida. Ah, sim, sim, há mulheres ruins, que manipulam, seduzem, tornam-se carrascos dos seus homens, essas também não valem nada, eu sei – e são muitas. Mas falo aqui das maiorias, e também do que conheço por experiência – pois não posso falar do que não conheço.
Quando um homem se declara, queridas, ele quer tomar posse, quer que você ceda, quer encantá-la por ser amada. E só. Ele não se preocupa se você sente o mesmo ou sequer algo próximo, se você vai autorizar a corte (eu sei, eu sei, ninguém mais fala nisso, mas sou do século passado). Ele exige ser amado em igual ou maior intensidade. É o ego que fala mais alto. Ele a quer submissa. E se você for educada e desconversar, ir levando, desviando nos momentos mais íntimos e espinhosos e tal, chegará um momento em que as coisas sairão do controle. Em tudo ele verá algum jogo teu, algum interesse maior do que só um contato de amigo ou colega, e te culpará. Ah, ele te culpará! E você se sentirá culpada. Pensará em mil coisas que não deveria ter dito, que não deveria ter feito, nos convites descompromissados que não deveria ter feito – porque na cabeça doente dele, tudo isso queria dizer outra coisa. A mulher é criada para se sentir culpada. Eu sou culpada por colocar os peitos num decote. Culpada por colocar uma saia curta. Culpada por passar um batom vermelhão. Culpada por usar aquele salto que dá uma empinada na bunda. Sou culpada por ter uma conversa interessante. Culpada por querer bem sem olhar a quem. Culpada por ter uma risada gostosa. Aí, tudo o que a gente é e faz pesa na consciência e a gente fica mudando uma coisinha aqui, outra ali, só pra não se deparar com homens exigindo posses que não lhes são por direito.
E sinto dizer que muitos homens fazem de propósito com que a mulher se sinta culpada pelo que ela é, faz e usa. E nós, na maioria das vezes, não percebemos isso na hora. E assim vai se instalando a pior forma de violência: a psicológica. Eu, graças a Deus, nunca fui estuprada, que é a forma de violência física da posse. Mas desconfio que talvez as violências psicológicas sucessivas possam, a longo prazo, ser bem piores. A violência da perseguição – em meios virtuais e reais. A violência do uso da tua imagem – é ultrajante pensar no que homens fazem ao copiar ou ao olhar as tuas fotos nas redes sociais, ou fotos de perfis de páginas e tal. A violência que vai cerceando tua liberdade, tua espontaneidade no trato com as pessoas. Sim, porque por causa de uns muitos ruins, você acaba agindo com rispidez, se esquivando dos outros, impondo limites ao que faz, ao que fala, ao que publica – porque teme o mau uso que farão disso.
Eu já me cerceei muito no mundo real e no mundo virtual por causa das pessoas (e não são poucas) ruins com as quais já tropecei na vida. E isso me dá raiva. Já deixei de frequentar lugares, já deixei de sair em certas cidades, já deixei de fazer coisas que adorava, me policio absurdamente nas redes sociais e, sim, até aqui no blog. Meus traumas, minhas experiências ruins, é que foram me fazendo deixar de ser quem sou. E poucas coisas me irritam tanto. Infelizmente, na lista de pessoas que fazem com que eu restrinja minha liberdade, primeiro estão parentes (algumas das piores pessoas que conheci) e em segundo os homens. Não falo sobre o caso dos parentes. Mas sobre os homens eu quase sinto a obrigação de falar – sem parecer a recalcada, sozinha, infeliz porque não o sou. Vejo meninas tão imaturas já declarando amores eternos. Vejo meninas ali já submissas ao primeiro que lhe impôs suas vontades – e muitas jurarão até a morte que foi vontade delas também. É porque vejo pais e mães a reproduzirem o molde de educação do macho e da fêmea – porque, de fato, eles são assim e não vêem outras realidades. Falta educação sentimental e sexual, falta experiência e reflexão sobre os atos – seus e dos outros.
E as mulheres a suspirarem por qualquer um que lhe faz uma declaração. Por qualquer “te amo” por sms ou WhatsApp. A se sentirem desejadas por qualquer um que lhe envia a foto do pinto (sim, pinto, pênis é muito científico e pau é vulgar) por qualquer chat ou meio virtual. E, vejam bem, as estratégias de jogo desses homens e rapazes é tão igual, as curtidas nas fotos, adicionar em redes sociais, DMs, conversas sobre como somos perfeitos, ou já chegam junto se fazendo de gostosões porque você parece descolada e liberal. Pois “liberal” é um adjetivo que me segue há tempos (eu até queria ter agradecido direito ao que assim me chamou pela primeira vez) e poucos se referem a isso no sentido político – pois comigo ele é polivalente.
E não é só no mundo virtual. Já relatei aqui, é até numa biblioteca! Desscralizaram todos os espaços. E juro pra vocês que me interromper em certos momentos é um erro mortal – meus solitários banhos de mar, por exemplo. Porque as mulheres não são iguais – e isso é demais para as pobres cabeças masculinas que têm pouco alcance e usam as mesmíssimas estratégias repetidas vezes. Pois sou dessas que é amiga do tempo, que aprende cada vez mais com ele, que coleciona experiências como maior riqueza que qualquer poupança. E hoje não acredita que alguém possa ser conquistado – e nem afirmo que um dia tenha acreditado nisso. E, vejam só, homens e mulheres estão aí no jogo da conquista, casais são formados assim – como num cabo de guerra para ver quem cede primeiro. Sobre jogos, só tenho me interessado por xadrez – com uma xícara de chá durante um temporal.
Sobre os homens que não se encaixam nas vilezas sobre as quais discorri: são poucos e se calam diante das atrocidades que os seus colegas de gênero praticam diariamente. Se calam diante das inúmeras notícias de mulheres perseguidas, agredidas, assassinadas que vemos todos os dias – confesso que é das que mais acompanho. Não levantam a voz a condenar seus amigos. Há os homens que perseguem – vão até o trabalho dela, fingem que estavam passando na rua onde ela mora, a esperam na frente da escola/faculdade – uma mulher e a coagem. Há os que ferem as mulheres ao mandar conteúdo pornográfico, fotos e afins por meios digitais. Há os que manipulam os sentimentos tentando atraí-las com aquilo que elas gostam – filmes, bichos, crianças, jantares, passeios, presentes. E me dirão que há as mulheres que gostam disso tudo. Pois eu pergunto: gostam ou se calam? Gostam ou temem dizer não, bloquear, denunciar, fugir, pedir proteção?
Nós tememos. Nós temos vergonha de dizer o que acontece. Temos vergonha de dizer que nos sentimos indefesas diante dos abusos e das insistências – nada pior do que um homem insistente. Temos vergonha de recorrermos aos mais próximos, amigas e familiares, e expor o que muitos vão dizer que é nossa culpa – fomos nós que fomentamos aquele comportamento obsessivo, explorador, doentio, possessivo, tarado. Sim, muitos pensam assim. Me parece que o simples fato de ser mulher fomenta qualquer um desses comportamentos em muitos homens. Tememos a agressão física de dizer um não (vejam aí notícias de moças espancadas em baladas porque negaram um beijo) sem perceber que a violência psicológica contínua é muito pior. Tememos pela nossa vida. Quantas mulheres morrem, por ano, porque terminaram um relacionamento?
Sei que há graus maiores e menores dessas violências – mas chamo a atenção para o fato de que qualquer conversinha mais ousada num app pode chegar a crimes maiores. No momento que se rompe a primeira barreira, qualquer outra será de menor importância.
Digo e repito (e um dia escreverei sobre isso) que sou uma pessoa do século passado. Então dirão que todas essas minhas preocupações parecem antiquadas. Pois bem, elas derivam de relações e da educação, entre homens e mulheres, de séculos e séculos atrás. Talvez tenhamos até aumentado os meios de violência. E certeza que temos despreparado meninas e meninos para o mundo, temos nos calado, fazemos que não vemos o que acontece, lhes damos uma suposta liberdade.
Disse muito do que queria dizer. Faltaram algumas coisas que acabaram não se encaixando. Sobre relações entre homens e mulheres, cabe lembrar daquilo que toda criança pequena aprende: a pedir desculpa (queria escrever sobre isso, coisa mais rara de se ver por aí). Entre caminhadas pela praia, banhos de sol e de mar, leituras truncadas, observação do entorno (real e virtual) eu só decidi mesmo escrever sobre tudo isso (entre algumas situações bem pessoais) depois de assistir a Despues de Lucia – tão mais no cerne da questão do que todas essas minhas três páginas. A violência não tem sido pensada adequadamente – e, claro, não falo de murros na cara.
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