Ao meu avô, Abib Cury, pelo seu centenário em 4 de junho de 2015.
Ele entrou pela porta e sorriu. “Ô, seu Cury, como vai?” era mais um amigo, um cliente que volta e meia aparecia com uma máquina de escrever Remington, meio velha, que engatava o R quando bem entendia. Ele entrava já dizendo, “A safada me judia, seu Cury. É eu precisar dela pra dar nisso.” e era recebido por um sorriso sem mostrar os dentes, o sorriso mais tranquilizador do mundo.
Se me perguntassem, eu diria que meu avô tranquilizava as pessoas. Pois eu não via viva alma ali entrar que não fosse em profundo desespero com suas máquinas travadas, sem fita, letra quebrada, debaixo do braço. E meu avô, ali do balcão em frente à porta sorria. Se eu fosse um pouco mais velha pensaria que ele era dessas pessoas que já viram tudo na vida e, por isso, a todo o mal, apenas sorri. As máquinas, sendo máquinas, enfim estragavam. E ele era esse herói que salvava a todos. Se eu via desespero nos olhos deles, a angústia é que dominava quando vinha com a minha máquina – primeiro as de conta, um tempo depois as de escrever – emperrada. E ele? Ele sorria e consertava, sem deixar de me mostrar o que tinha acontecido e como resolver. Com ele aprendi a aprender. Era assim, eu ficava ali e observava tudo. O torno, o esmeril, as bancadas, as enormes luminárias, eram os personagens das minhas histórias infantis.
E o movimento quase não parava. Entrava um, logo outro, era raro o nosso oficina ficar vazio. De vez em quando estacionava um carro e desciam várias máquinas, eram de alguma escola, comércio ou escritório. E lá iam elas para a prateleira preta no fundo do corredor, cada uma com o nome e o telefone do dono, anotadas num pedaço de papel de bobina de máquina. Ali elas dividiam o espaço com os garrafões de vinho. Ah! Se você fechar os olhos agora e imaginar o cheiro de graxa misturado com o cheiro do vinho conseguirá se transportar pra lá. Era gente da cidade inteira que parava ali. E tinha quem nem vinha arrumar máquina, aparecia só para conversar com o seu Cury, que debruçado no balcão sobre alguma revista ou jornal, falava de tudo do mundo todo – foi com ele que aprendi a ouvir.
Eu fui criada ali, entrava correndo por uma porta, me atirava voando pela outra, pedia uma ferramenta, sumia e voltava pra chamar para o café. A vó me mandava chamá-lo e eu voltava dizendo, “Vó, é o seu fulano que tá lá.” e ela já suspirava: era daqueles que a conversa ia longe. Eu participava como de um evento solene quando ele ligava o esmeril e quando ele ia até a cobertura do lado de fora pintar alguma peça com o jato de tinta. Com ele aprendi a me fascinar. Eu? Eu sabia onde ficava tudo ali, era só me pedir. Aquela tesoura preta gigante era minha obsessão, eu sempre queria cortar qualquer coisa só para poder usá-la.
Meu avô sorria e resolvia todos os problemas de todos, sempre. Naquela época as máquinas elétricas já tomavam o lugar das prateleiras. Hoje, com seus 100 anos, meu avô não teria máquinas de escrever para arrumar. E aqui do nosso oficina eu me imagino estragando de propósito a minha Olympia só para que ele, como um Aureliano Buendía, a arrumasse com suas mãos que são tão iguais às minhas – e eu a estragaria de novo. E assim passaríamos imunes ao tempo e ao mundo.
Foi na primeira máquina de escrever portátil que tive, presente dele, que escrevi meus primeiros versos. Daqui do oficina penso nas palavras como tranquilizadoras da saudade e necessárias à manutenção da alma – e me invade aquele cheiro de graxa e vinho. Pois sei que há famílias condenadas a cem anos de solidão, mas a nossa está condenada a morrer de tristeza.
Texto publicado no jornal Notícias do Dia, Caderno Plural – Confraria do Escritor. Joinville, 22 de junho de 2015.
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