Não sei bem quando foi que conheci a maldade. Talvez tenha sido quando a colega de escola, nos primeiros anos, me chamava de elefante – “ó, lá vem o elefante!”, gritava pelos corredores ao me ver, ela que era e ainda é magérrima. A mesma que hoje tem por companheiro um rapaz acima do peso e abriu um restaurante de comida vegana, além de viver cercada por mandalas e afins.
Talvez tenha sido quando pessoas muito próximas, dessas que dizem que temos o mesmo sangue, traíram, enganaram e causaram uma infinidade de males às pessoas que mais amo. Lembro bem, enquanto na escola me chamavam de elefante, de uma ex-prima, ao dormir na minha casa, dizer que os pais dela diziam que conosco era tudo “olho por olho, dente por dente” e de uma ex-tia que me agarrou à força na frente de casa e me disse tanta coisa que ao chegar para minha mãe eu nem sabia repetir tudo aquilo – o bloqueio, graças a Deus, permanece até hoje.
E foi assim, de pessoas que eu nem ligava muito até aqueles que entram na casa da gente, que eu conheci a maldade. Vi as lágrimas correrem de olhos nos quais eu jamais imaginaria, tudo por conta da maldade. Lá se vão quase trinta anos de vida e posso dizer que, na pele, já senti a maldade em umas centenas de formas – enquanto observo-a, no mundo, em tantas outras fantasias que ela adquire.
O mal não é novidade. O mal é banal. Enquanto houver ser humano na face da Terra, existirá a maldade. Todos nós podemos praticá-la. O ser humano, enquanto ser, é mau – falta-lhe a humanidade. Já devo ter dito, mas não gosto dos adjetivos “selvagem” ou “bárbaro” para designar o que me parece estritamente humano, como a maldade.
Talvez pela minha natureza curiosa ou teórica, gosto de quem pensa a maldade. Foi o que me atraiu em Hannah Arendt. Ainda experienciando a maldade no meu dia a dia, tive contato com Eichmann em Jerusalém. Desde aqueles tempos da escola, a história da dizimação dos judeus me fascinava (a maldade, vejam só, tornar-se-ia um tema dos mais relevantes na minha vida) com suas fotos nos livros de Histórias (os quais guardo até hoje). É um fragmento da História da Humanidade que detém meus pensamentos há muito tempo. E a filósofa toma Eichmann, esta figura pretensiosa e angustiante, como exemplo do mal que se faz tomando o famoso “apenas cumpri ordens” por princípio. Ela quer distanciar os vilões, dessas moças bonitas, maquiadas e bem-vestidas das novelas da TV, por exemplo, da pessoa genial, da grande vilania da literatura. O vilão é um Eichmann, um ridículo. É esse cara com quem você almoçou ontem, de calça jeans e camiseta, sem nada de especial.
Recentemente me deparei com Labirinto de Mentiras e The Eichmann Show, além de ter revisto Hannah Arendt, estes dois utilizam as imagens reais de arquivo do julgamento de Eichmann – pois imagino que não há ator capaz de interpretá-lo na sua total falta de humanidade; só demonstra, talvez, no máximo, preguiça em estar ali – e me debrucei novamente sobre a maldade: como não gostamos de falar sobre isso, como fazemos de conta que ela não existe. Até, talvez, atacarem a capital mundial da liberdade. Aí é difícil evitar os noticiários e o assunto do momento permeado de opiniões rasas.
Depois que li A Sangue frio, delineei uma relação entre o livro da Hannah Arendt e a jóia de Truman Capote. Ambos tratam do mal, este mal banal que permeia a nossa vida, seja lá a vida de quem for. Eu já conhecia a história da família assassinada em Holcomb, porém ao começar a leitura percebi a genialidade de Capote ao traçar o caminho (não só geográfico) dos assassinos. Ao terminá-lo, perguntas ficam sem respostas. Não é o crime, a cena sangrenta, que interessa.
Talvez por este interesse em particular pela maldade eu não entendo a comoção histérica diante de grandes catástrofes e holocaustos perpetrados pelo ser humano. O mal que se faz ao planeta, tanto quanto o mal que se faz a qualquer ser humano (seja ele branco, negro, mulher, criança, homem, idoso, etc.) é o mal que se faz contra o mundo no qual vivemos e contra todos nós. Não existe grau de “mais mal” e “menos mal”, seja por questões pessoais, religiosas, geográficas ou políticas. Hannah Arendt enfatiza a maldade propagada por ideologias, pois muito mal se faz em nome deste ou daquele, desta ou daquela crença (em idéias, deuses, ídolos). Nossas crenças pessoais são as que mais praticam o mal. A colega da escola não me chamava de elefante porque pertencia ao partido de algum Estado totalitário, eram as convicções pessoais dela (sim, as temos desde cedo) que a levaram a agir assim. A maldade, em si, não precisa de grandes causas, não precisa encontrar em um povo inteiro a sua vítima.
Talvez não sejam esses medíocres a praticar a maldade verbal mais pobre que estejam aptos a praticar os grandes atos maus. Depois desses anos todos e de tanto pensar nisso, sei que o mal está em quem tem poder, dinheiro, meios tanto quanto em quem não tem um tostão no bolso, nem um cachorro que lhe lamba a cara: e os atos de todos prejudicam, matam, ferem, destroem, deixam cicatrizes para sempre.
Talvez a humanidade prefira creditar as atrocidades do mal à grandes grupos religiosos, étnicos ou políticos. Porque o que torna a nossa vida ainda mais difícil, ainda mais insegura, é sabermos que o mal em si é medíocre, é banal e, como Labirinto de Mentiras expõe tão bem, está no padeiro, nos nossos familiares, no professor da escola dos nossos filhos, nos grandes artistas do nosso tempo, em líderes que vêm do povo. É isso que nós não queremos saber.
O mal, a despeito do nosso medo de encará-lo, não tem limites ao ser praticado nem ao que ou quem atinge. E preferimos pensar que estaríamos a salvo no seio da nossa família, cercado pelos vizinhos do nosso condomínio, ao entrar no avião, ao jantar tranquilamente nos melhores restaurantes, enfim, cercados pela civilização da qual tanto nos orgulhamos.
É raro, mas quis deixar assim organizado (tudo fácil de encontrar, nada cult ou dificílimo de ver/ler).
* Lista das citações
– Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt, 1963.
– Im Labyrinth des Schweigens (Labirinto de Mentiras), Alemanha, 2014. Direção Giulio Ricciarelli
– The Eichmann Show, Reino-Unido, 2015. Direção Paul Andrew Williams
– Hannah Arendt, Alemanha e França, 2012. Direção Margarethe von Trotta
– A Sangue Frio, Truman Capote, 1966.
E alguns outros que eu lembro agora porque me marcaram muito:
– Areia Pesada, Anatoli Ribakov, 1978.
– Wakolda (O Médico Alemão), Argentina, 2013. Direção Lucía Puenzo
Exceto A Sangue Frio, todos tratam do assassinato em massa dos judeus – é uma fixação minha, claro, mas considero um bom exemplo a não ser esquecido do ser enquanto não-humano. As bombas em Hiroshima e Nagasaki também podem ser usadas, a perseguição aos católicos no Oriente Médio, a Inquisição Católica, o tráfico de escravos, e tantos, tantos, tantos outros (volta e meia falo disso por aqui, aliás). O que só prova meu ponto de que o mal está sempre presente, é inerente a nós.
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