O legítimo cronista

O cronista legítimo é velho, é aquele senhorzinho que fica a encantar-se como se fosse a primeira vez com o que vê no seu quintal – porque ele certamente tem um quintal. Ou, se é daqueles velhos de cidade grande, falará da vizinhança do seu apartamento ou do cotidiano do Leblon. Porque o cronista tem que ter tempo para ver a vida. Para deleitar-se com ela.

Os jovens não têm tempo para a vida, atropelam-se no ridículo de suas certezas e contestações e um dia, ah! um dia!, sentirão vergonha do que foram – ou fizeram. Os jovens escreverão sobre o amor, sobre as desilusões, sobre relacionamentos e, claro, sobre como é um ato inglório escrever. Porque, é ainda mais claro, eles preocupam-se só e somente com eles mesmos. O jovem lá tem tempo de reparar no vôo incerto de um beija-flor sob a chuva fina que cai no amanhecer do outono? Não, a essa hora ele dormirá pesado depois de uma longa noite de bebidas, rock e questões existenciais diante daquela mocinha que ele quer pegar.

Mas o velho acorda cedo, ouve o silêncio e faz seu próprio mão com manteiga na chapa com a delícia de infringir as regras do médico do coração e da nutricionista, antes que alguém acorde e o pegue em flagrante. Aí ele vê as formigas, em desespero, atravessarem um mínimo buraquinho debaixo da janela e levarem gotículas de mel para suas casas, antes que o frio as mate a todas. Ele sorri e jamais as enxota, afinal, ali está a vida, a necessidade, o instinto e quem sabe alguma inteligência. Talvez, depois do pão escondido e de umas colheradas de granola acompanhada de café com leite desnatado (sob supervisão), ele vá sentar-se no computador e discorrerá sobre aquelas pequeninas vidas. Ou, ainda, talvez ele se bata infinitamente para configurar alguma atualização automática do computador, se irrite e tenha que chamar algum parente próximo – um sobrinho, quem sabe – para salvar-lhe a vida e o computador. Aí, então, ele escreverá sobre essas monstruosas máquinas que nos tomam o tempo.

Certo é que o velho cronista sabe desfrutar o tempo. Enquanto os jovens ligam o computador para escrever o livro da sua vida e passam três horas jogando o último lançamento da Sony. Quando se é jovem nem sabemos que o tempo existe, por que iríamos jogar sementes em potinhos cheios de terra e esperar semanas, meses, cuidar com a falta ou excesso de água, para colher deliciosos pés de couve-de-bruxelas ou espinafres? Os jovens imaginam que o tempo é ver, de um dia para o outro, uns fios de cabelo branco na cabeça do pai, ou pequenas rugas surgindo no rosto da mãe.

O cronista velho já foi jovem. Ele já escreveu sobre as noitadas, sobre suas bandas favoritas, sobre shows inesquecíveis. Relatou em minúcias as aventuras pelo mundo afora, coisas que para o cronista velho só de pensar já lhe doem os joelhos. O cronista, quando jovem, acumulou horas e horas desconfortáveis em bancos de avião e de ônibus, já subiu altos morros, teve os desesperos iniciais das separações e o conforto falso dos novos relacionamentos que curam as feridas. O cronista nos seus bons tempos travestia opiniões políticas ferozes de crônicas inocentes sobre os dias da República. Ele desafiava os desafetos com crônicas tão ferinas que ninguém diria que aquelas cenas eram todas inventadas. Quando jovem, ele gritava; o cronista velho sussurra.

Aí estão o jardim, os netos, as plantas, as árvores que sabidamente dão frutos só em determinada época. E o cronista velho não precisa mais correr atrás de editores de grandes editoras, nem bajular críticos dos grandes jornais, ou almejar um apartamento na avenida mais cool da cidade. Ele está ali, diante do tempo. Vê como a terra demora para entregar-se, como as crianças enxergam o mundo sem filtros, como as pessoas se distanciam com medo dos pedidos de amparo e ajuda. Talvez o cronista velho ainda escreva para algum jornal, então terá o compromisso semanal (dificilmente diário) de usar o computador para escrever sua doce ou melancólica crônica e enviá-la; ou, quem sabe, agora ele se dedique àqueles planos literários com os quais sempre sonhou, mas que deixou para depois porque precisava escrever o livro da sua vida, antes.

Depois do café da manhã, outras lutas se impõem ao cronista velho. A audição que não ouve o carteiro chamar, a mão que treme de vez em quando e derruba a lata de verniz que ele passava na madeira da janela, a dor lancinante nas costas que não o permite assistir a um filme por duas horas sentado, a vista que embaralha as pequeninas letras de um livro que um jovem autor enviou-lhe solicitando que ele escrevesse a orelha, a dieta tão rigorosa que lhe priva de uma suculenta lasanha no almoço (e lhe garante metade do prato de folhas verdes), a saudade de pilotar a moto sem destino pelas trilhas de barro… e disso tudo ele decanta suas crônicas. Porque o tempo é o melhor óculos.

O cronista, quando jovem, não percebe que não tem tempo – apesar de usar a expressão com frequência. Ele salta sobre as ofertas que a vida lhe dá. E suas crônicas queixosas e arrogantes farão sucesso, ele é o cronista da sua geração; será aquele que entende a alma dos jovens, será aplaudido pelos seus iguais, louvado pela crítica e compartilhado entre seus novos e velhos fãs. Quando se é jovem, o ego fala mais alto. Fala tão alto que não permite nem que os conselhos sejam ouvidos.

No fim do dia, o cronista velho se deliciará com o banho. Terá ficado exausto de podar umas roseiras, fazer os reparos na casa, cuidar dos netos por duas horas, lido umas cinquenta páginas e levado a esposa ao médico. Mas todo dia ele se desafiará a ocupar cada segundo das horas só com o que ele quiser, com o que lhe fará ver melhor a vida. E se ele for perder tempo, será em observar as minhocas escapando para os meandros escuros da terra quando ele cavocá-la. Se ele for perder tempo, parará no canal de desenho animado para rir de coisas bobas. Se ele tiver algum compromisso, e perder a vontade de enfrentar a cidade, sentará na varanda em boa companhia e puxará uma prosa sobre uma bela lembrança. E, claro, já terá material de sobra para as próximas crônicas. Enquanto o jovem cronista sofre diante da síndrome da página em branco.

O cronista velho tem essa vantagem: há tanto na memória e na vida para preencher aquelas linhas. Eis a legitimidade da crônica.

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