Pés na areia…

A mãe traz na memória o retrato do sorriso do filho quando da primeira vez que o viu nos seus braços depois do parto. O fanático descreve cada passe daquele gol fantástico que definiu o campeonato para o seu time. O cirurgião, toda vez que entra na sala de cirurgia, lembra do leve tremor que sentiu na primeira vez que segurou o bisturi. São as lembranças, mais que lembranças, são aquelas fotografias, mais que fotografias, pois têm cheiros, sensações, sons, arrepios, que todos temos e que volta e meia rememoramos. A mãe que perder seu filho o terá sempre ali diante dos olhos, o primeiro sorriso, o som da voz, as marcas pesadas que a vida deixa na gente.

Elas podem ser boas ou ruins – mas hoje, nem esta semana, eu não quero falar de coisas ruins. Fiquemos com as boas. Eu guardo comigo uma risada, o som e a beleza de uma especial risada – da qual sinto muita falta. Eu reparo muito na risada e no sorriso das pessoas, considero os melhores cartões de visita. Ou é só porque eu gosto de rir e fazer rir. Fazemos essa coleção memorativa sem nem perceber, sem catalogar, sem hierarquizar – bem, alguns não. Quando a gente se dá conta, está aí com álbuns inteiros preenchidos. Dizem que as primeiras vezes a gente não esquece (e eu não concordo muito). O primeiro beijo de um grande amor, ou daquele namoradinho mesmo, que o amor acabou, o relacionamento acabou, mas aquele beijo… ah! Ele ficará.

Talvez por essas traquinagens (desculpem, eu preciso usar esta palavra hoje) da memória que existem as canções que embalam os nossos momentos. Foi quando nos encontramos naquela festa e o teu olhar cruzou o meu que tocava tal canção – nunca entendi muito isso, pois atenção dispersa por natureza, dificilmente eu saberia o que tocava no momento que me deparei contigo (pois antes do riso eu preferia o olhar…). Mas dizem que é assim. O sabor da polenta da vó, no aconchego do calor do fogão a lenha, que nunca ninguém fará igual – nem a tua esposa escolhida a dedo. O perfume das damas da noite nas longas caminhadas pelas madrugadas. Ou aquele abraço, de quem você menos esperava, no momento que você mais precisava.

Não sei se vocês param, às vezes, para repassar toda essa coleção. Sei lá, num domingo de manhã que é a hora que tanta coisa nos faz falta na vida. E só deliciar-se com reviver cada lembrança, sem motivo. Porque somos vítimas da memória a qualquer instante. Elas voltam quando você passa por alguém que usa o mesmo perfume do teu ex, quando você vê a cor favorita da tua amiga, quando qualquer bobagem do mundo real e frio é um túnel para a bagunça das lembranças.

E é esse calor incerto… esse sol sedutor, esse guardar pantufas e cobertas e aquecedores. Eu quis esquecer tudo de ruim das últimas semanas. Eu quis sobreviver a elas. Eu quis ter esperança. E me agarrei à inominável lembrança que tenho de colocar os pés na areia. Afundá-los, mexer os dedos até sentir o arranhar impiedoso e glorificante da areia sobre a pele macia. Sentir a água gelada do mar enterrar meus pés ainda mais na areia… me agarrei a esta sensação – jamais esquecida – para contar as horas e os dias. Nunca passei tanto tempo sem senti-la. Nunca. E, por isso, algo por aqui está triste, importa-se menos com tudo e com todos. Vejo-os e suas fotos de praia (feriados e finais de semana) e vejo-os de tênis e nas calçadas. Entro nas fotos sem pedir licença e no meio do caminho tiro o chinelo e enfio meus pés na areia. Mas, cá estou na poltrona e pés gelados.

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