Quero te desejar uma boa Primavera. Sei que me desejarias o mesmo. Sei, também, que isso não diz nada. Eu estava diante do mar de ressaca às 11h21 e garanto que nada mudou – nem o sol ficou mais quente, nem mais brilhante, nem surgiram flores pelos morros, nem o vento soprou mais sedutor. Nem eu, naquele instante, mudei. Sei, porém, que toda Primavera transforma a vida da gente. Repara. Não tenho estatísticas, não tenho provas. Mas, repara. Temos até a beirada do Verão para olhar bem. É preciso, porém, olhar de perto e com coragem. Coisa que não fiz com essas ondas enormes que hoje tomaram meus olhos a manhã toda. Às vezes, preferimos olhar de longe e com pontadas de covardia – ou seria medo?
O Inverno despediu-se com enterros. Levou-me um recente sossego. Levou-me a apatia de ser quem eu era há tanto tempo. Disse-me ele, com todas as letras: as coisas não se repetem, Fahya. Disse-me, também, enfurecido: de onde queres enganar-te a deixar o passado sobrevoar sobre o presente? Ele foi cruel comigo nas últimas semanas, arrasou-me, puxou-me as orelhas, disse-me cínico: não tens como continuar sendo a mesma, renova-te. Receio encontrá-lo daqui três Estações e ele me cobrar o que não tive forças para fazer. Ficaremos de mal, abraçados debaixo de casacos pesados.
Desejo-te uma bela Primavera. Que possamos esquecer – que mudar dá trabalho pra mais de uma Estação – um pouco quem somos. Desejo que ela nos prepare com calma para o turbilhão da próxima, quando é ainda mais difícil viver despidos das nossas fantasias. Quem dera a Primavera não tivesse sempre deixado suas cicatrizes e tatuagens na minha vida, obedeceria ao Inverno e jogaria o passado entre as rochas agora fustigadas injustamente pelo mar que vinga-se da sua saudade. Não foi de ontem para hoje que deixei de ter um passado, mas o Inverno sorrateiro tem toda razão. Como, então, despedi-lo, mandá-lo embora para a tumba fria da memória? Sei lá, será que já podemos almoçar e voltar a ver o mar?
Me ensinaram que só vivemos a repetição – das horas, dos dias, das Estações, dos mitos, dos fatos, das explicações, das datas tristes e festivas, dos arrepios e dos vícios. E o Inverno, sacana, me manda não pensar mais assim. Assim, de antes de ontem pra hoje. Levou-me pela mão até o costão e me explicou, deu exemplos, discutimos. Quase me convenceu. Lembrei que ele em breve partiria e resolvi não brigar mais. Prefiro despedidas com apertos de mão e sorrisos abertos. E hoje me sinto a aluna de férias com uma pilha homérica de tarefas a cumprir. Boa aluna que nunca fui, será que já podemos fingir que nada disso aconteceu e voltar para o sol com a missão do bronzeado primaveril?
Me conforta te dizer que, ao contrário do exigente e mandão Inverno, a Primavera é aquela amiga meio louca que nos empurra e apoia sem muita distinção. Ela deixa tomar banho de mar com a água fria debaixo do sol quente, sem se preocupar com a febre que virá de madrugada. Ela nos abraça e dança junto sob a chuva refrescante ao final do primeiro dia mais quente desde abril e está nem aí para os papéis importantes encharcados dentro da bolsa. Ela chega de mansinho, pedindo rouca que sintamos o prazer de andar descalço. Passa feito furacão guardando as blusas de lã, abrindo a garrafa de rum da geladeira. Ela não quer mais janelas fechadas, empurra tua mão para abri-las, sentir o vento na cara e nem ouses ligar ar-condicionado! Porque é só isso que ela quer: que tu sintas. E é assim que desejo sempre a Primavera: a sentir mais. Depois passaremos o sufoco das consequências de tanta ousadia – mas só no Verão.
Te desejo uma boa Primavera. Porque ninguém toma decisões nas Primaveras. Ela não nos julga – culpados ou penitentes. Ela busca encobrir nossos rastros de erros do passado. Vai, aos poucos, pedindo com jeitinho que a gente mostre o que existia adormecido no Inverno. Ela nos convida a vê-la, ao show que ela não deu às 11h21, mas que terá atrações todos os dias e madrugadas. Ela quer que a gente mude, pra melhor (talvez ela tenha ouvido minhas discussões acaloradas com o Inverno, não sei). Ela ri de mim, dessa ânsia aloprada em pegar tanto sol e estar com a pele em brasas antes da nossa hora marcada – talvez só o Verão saiba como gosto do cheiro do sol sobre a pele.
Desejo, a nós, uma inesquecível Primavera. Não esqueça, não se distraia: repara. O Inverno é pai das certezas; nem só de repetição é feita a vida, e o presente de passado se sufoca.
22 de setembro, 12h. Hora de almoçar e voltar para a praia.
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