Quando olhei a cidade, vi tudo igual. As mesmas ruas, as mesmas gentes. O mesmo tamanho, os mesmos olhares. Eu não esperava, porém, nada além. A cidade não crescera, depois de tantos anos. Não ampliaram a visão, as gentes daquela cidade. Eu via tudo igual como antes porque, ali, tudo permanecia tudo tão igual como antes. Os passos não haviam se modificado. As moças usavam bermudas jeans, os operários seguiam nas magrelas. As igrejas disputavam território, as fábricas fediam os ares. Havia um algo diferente: casas ao chão, prédios arriba – mas, enfim, era tudo construção. Senti falta dos jardins, das floreiras e dos canteiros. Haviam sumido ou eu que havia romantizado tudo aquilo? As praças cinzas, o rio poluído. Os eternos dias de chuva, os suarentos dias de verão. Se o tempo por ali se detivera, eu ignorava. Se fosse gente, diriam que estava conservada – num sarcófago.
Quando olhei a cidade, tentei ver o que me passara batido. Um pouco mais de vida, não nas cores nem nas flores nem na época das danças, mas num dia ou outro com jovens pelas ruas. De tanta vida na fábrica, as gentes quando caminhavam pareciam máquinas. Numa cena fugaz, novas vidas passeiam a desafiar o tom monocromático e conservador daquelas gentes que por muito a cidade habitam. Refulgiu uma esperança, que o tempo lembrasse de passar naquela terra entre o rio e os morros. Os muros pintaram-se de ironias e desafios ao pensamento que calculava e apertava parafusos. Os tapumes encheram-se timidamente de questões e declarações. Mas as gentes da cidade andam cabisbaixas e, talvez, não percebam. Eu, de surpresa e alegria, fotografo. Há vozes sussurrantes a incomodar pelas esquinas da cidade.
Quando olhei a cidade, entendi que eu também ainda era a mesma. E não combinávamos nem no gosto musical. Não nos entendíamos nas prioridades. Não aceitávamos uma a outra. A cidade agora tinha mais ruas paradas com filas de carros, um novo mirante, um novo shopping. Eu agora trazia um pequeno caminhão de mudança, muitos cabelos brancos, mais algumas cicatrizes. Os buracos nas ruas e as minhas rugas. A cidade, porém, empoeirada, meu coração brotava novos sonhos. As gentes envelheceram e os jovens ainda sem horizonte. As costas decididamente voltadas para o mar. As ambições a entupir os bueiros. Os descolados no miolo da cidade, os ignorados a comê-la pelas bordas. E eu, como sempre, a vê-la com lupa. As estrias surgiam debaixo dos cremes das propagandas. As suas fissuras entreviam erros antigos.
Quando olhei a cidade, decidi que não havia amizade. Nem nunca houve, talvez. Nos despedíamos sem abraços. Não nos mandávamos postais. Nem sequer um telefonema protocolar. Jamais iríamos ao cinema juntas. Nem sequer comentaríamos o último jogo da seleção. Vivíamos como as gentes que casam mal. Com as gentes dali eu ainda travava bons enlaces. Perdera, será, a crença de que o pensamento daquele lugar um dia ultrapassaria seu passado? Quando olhei a cidade, vi-a mais feia. Vi-me mais desiludida. Quando olhei a cidade, não encontrei sua alma. Tentei ignorar nossas diferenças. Quando olhei a cidade, quis encantar-me com seus mistérios rurais. Senti sopros, em intervalos. Quando olhei, assim calma e detidamente, o que a cidade diz nas suas veias e as gentes da cidade dizem com seus olhares… as palavras soavam distantes da verdade.
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