Amuletos

O primeiro sinal é não olhar-se ao espelho. A imagem não é mais duplicada, é única. Mesmo invertida, desnuda-se mais do que convém. O segundo sinal demora a aparecer: é a mão que não está só – nem apertando convulsivamente a outra mão de si mesmo. Mas, voltemos ao espelho. Ele, como diria o poeta, é amuleto dos ciganos. Por vezes tão difícil conviver consigo mesmo, qualquer droga nos alivia este peso. E o espelho ali na sala, perto da porta de entrada, não nos deixa escapar. O espelho do banheiro aprisiona a cara lavada – deste, mesmo, impossível fugir. Ele não nos despe, ele nos invade. Não tem melhor ângulo nem a cara de malvado: ele nos vê no todo. E ele percebe.

A mão cofia a barba no meio de um trabalho complicado. Ela cutuca aquela espinha dolorosa no nariz. Tamborila o vidro da mesa numa reunião chata. Sacode freneticamente o lápis durante o desenho que não sai como deveria. Agarra com vontade a colher de pau diante da panela fumegante. A mão, eis nosso símbolo mais solitário. Ela vive por si sem mais. E, por isso, é o segundo sinal: mete-se entrelaçada em outra. Aconchega-se nas reentrâncias da mão de alguém. Antes disso, entre o primeiro e o segundo sinal há uma longa distância – e muito pode-se fazer para não chegar de um a outro, caso se deseje.

Voltemos ao espelho. Ele é indesejável. Quem dera um Photoshop ligasse automático quando nossos olhos fixam o perfil de soslaio: tudo seria mascarado. É o olhar, por certo. Ele denuncia qualquer movimento intenso do coração. Mas é também aquela ruga minúscula debaixo dos olhos que nos contam das horas sem dormir à espera das palavras e gestos. Quando menos se quer, são os lábios que escancaram o prazer que tens sentido – e, quem sabe, desejaria camuflar. Só pra não dar, assim, na cara. Ou a tristeza, vejo-a bem, que deixa os lábios secos e pálidos. Mira o piscar, lânguido e demorado. Os olhos não fixam de imediato, todo o rosto questiona a realidade em volta: o que foi mesmo?

Aí não tem mais volta. Pelo menos por enquanto. Logo, logo as mãos serão surpreendidas. Então, talvez os espelhos nem importem mais. Ou deixaremos de reparar neles. Não me admira que o espelho tenha caído em desuso. As telas dos celulares refletem a nossa aparência, recorremos às dúzias de autorretratos quando queremos saber como estamos. Assim, não vemos nada. Não vemos mais nada. Assim não se vê o primeiro sinal: os olhos vêem só o que queremos ver de nós.

O espelho rouba-nos a alma, sabedoria indígena. Nossa reação ao roubo é sempre de autodefesa. Não somos capazes de enfrentá-lo: vai, espelho, toma, leva-me a alma. O espelho é o traidor dos apaixonados. Apunhala de frente, sem acovardar-se, no meio da testa. Crava-nos a verdade e nos desalma sem amparo. Sábia lição dos ciganos. Levaria muitas páginas a descrever todos os sinais seguintes. Não têm importância, de fato. Quando necessário, só recorrer aos espelhos – há muitos deles por aí. Alguns mais especiais que outros, pois lhe dirão com todas as letras, te chamarão pelo nome, inclusive. Para os mais inseguros, recomendo aqueles de bolso, perfeitos para momentos de emergência – apesar de pequenos, elucidam grandes dúvidas. E são do tamanho dos mais preciosos amuletos.

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