A vida na cidade

Eu sentia a cidade diferente. Faltava algo por ali. Vida. Havia pessoas, sem dúvida. Havia árvores, também. Mas algo faltava… no ar, quem sabe, não era Primavera, as flores não perfumavam as esquinas. Ainda não era isso. A cidade nem crescera, nem chovia menos. Prometo não entrar naquele papo de “quem mudou fui eu”. O cheiro ruim das fábricas também era velho conhecido – desconfio que jamais mudaria. Lojas que fecharam e outras que abriram no seu lugar. Era outra coisa…

Eu vinha do interior. As cidades tinham vida, os olhares se cruzavam pelas ruas. Acenos de cabeça a desconhecidos. A lanchonete oferecendo sopa àquela hora da noite, única de portas abertas no frio que arrasava esta terra. Um velhinho tarrafeava próximo ao píer, num repetir de gesto e vazios entre fios. Nada de peixes. As igrejas e seus sinos. Os alambiques no silêncio abençoado. O vento arrebatava os topos das árvores. Nós parávamos para contemplar o entardecer.

Agora eu percebia a diferença. Os cachorros e gatos pelas ruas. Eles se espreguiçavam pelas praças, nos seguiam abanando o rabo com aquele olhar cobiçoso ao nosso sanduíche. Os gatos, nas manhãs de domingo, preguiçosamente lambiam as patas sobre os muros. As crianças, nos dias de calor, gargalhavam entre guapecas e mangueiras esfuziantes de água fria. Era essa vida.

A cidade grande civilizara-se. Agora preocupávamos com tudo – e todos, claro. Todas as nossas mazelas deveriam ser superadas – ou devidamente escondidas das nossas vistas. Os cães agora dormiam em caminhas confortáveis, cheios de cobertas e brinquedos, e comiam sentados às mesas com seus tutores. Tutores, pois dono é quem possui algo ou alguém, o que não é o caso, agora os seres humanos civilizados apenas tutoram a vida dos animais. Me perguntei: se o cachorro quisesse partir, então seu tutor deveria deixá-lo. Certo?

Na cidade grande ainda havia outro tipo de vida. Eram essas pessoas que vagavam pelas ruas e dormiam sobre papelões. Era uma vida que não precisava de tutoria. E era uma vida que mortificava a vista do entorno. Não dava vida.

Eu sentia a cidade sem a vida que se criava ao rés das possibilidades. Observava como havia poucos cães e gatos a olhar pelos portões – mas muitas janelas de prédios com redes. Eu passava pelas casas ansiando vê-los agora bem alimentados, felizes, de banho tomado (toda semana no pet shop, é claro), e atrás dos muros e grades e portões a correr pelos gramados. Eu imaginava como era perder a liberdade. Sair da rua direto para um apartamento de um quarto espremido entre milhares de outros apartamentos assim diminutos. Ou, quem sabe, para o canteiro minúsculo de um geminado. Eu ouvia latidos e choramingos de segunda a sexta, das oito da manhã às seis e meia da tarde.

A vida da cidade agora residia sob roupinhas engraçadas e lacinhos dourados a dormitar sobre sofás, estressada a correr atrás do próprio rabo e condenados a dermatites sem cura.

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