A Filosofia e a Omissão

Por vezes eu me sinto culpada. Principalmente por ter sido omissa. A omissão é a pior das culpas. E não adianta dizerem “mas você fez o que podia” ou, pior, “você não podia ter feito nada”. A culpa persiste. Já fui omissa algumas vezes na vida, reconheço – e lamento, de um jeito meio doloroso.

Uma ex-aluna minha, de Filosofia do Ensino Médio, fez vestibular para o curso de graduação em Filosofia, para a mesma universidade onde eu fiz. Fiquei feliz, óbvio. A sensação de fazer diferença na vida de algumas pessoas é muito boa. E pela Filosofia, então, essa desesperançada beleza que está mais em desuso e em desvalorização do que qualquer área do conhecimento. Não fui, claro, a única influência dela para seguir neste curso, mas sei que tive lá minha pontinha de responsabilidade.

Depois de um tempo que ela entrou no curso eu acompanhei relatos e a luta dela, e de outras alunas, diante dos abusos e assédios no curso. Meninas mulheres sendo assediadas por professores, colegas e funcionários do departamento. Além disso, complicado dizer “ainda pior”, elas também relataram a luta que é para que sejam reconhecidas como capazes e iguais, numa das áreas mais difíceis dentro de uma universidade. Sim, pode parecer incrível (e, de fato, é), mas mulheres, hoje, em 2017, no Brasil, precisam lutar para mostrar algo tão óbvio: somos intelectualmente tão (ou mais) capazes que os homens.

Eu fiquei triste. Porque eu sabia que era assim – e em nenhum momento a preveni do que ela teria pela frente. Se eu tivesse prevenido, sei que não teria a desencorajado – mulheres que fazem Filosofia são destemidas. Mas ela não teria se desiludido tanto, talvez. Ou ela já estaria melhor “armada” quando se deparasse com as agruras da vida acadêmica de uma estudante de Filosofia.

Mas, pior ainda mesmo, é a sensação de culpa por eu ter silenciado. (vocês estão de prova, não silencio mais: a gente aprende) Eu não lutei e não me fiz ser ouvida quando fui assediada no curso, por professores, por colegas. Eu não expus os abusadores que mantêm o status quo atrás de suas poses intelectuais. Eu deixei de frequentar a lanchonete do prédio, eu ficava chateada e de vez em quando pensava duas vezes antes de me vestir para ir à aula. Eu não ficava em certos horários, em certos lugares. Nem mesmo quando era de conhecimento de muitos que eu estava em algum relacionamento, na época, eu me livrei dos assédios. Coisa que, de vez em quando, nos dá um pouco de sossego.

Eu silenciei. Talvez seja hipócrita, por isso, hoje eu dizer para que não silenciem. Ou não. Porque eu não silencio mais. Eu exponho homem machista, abusador, assediador, intransigente, intolerante, agressor e tudo o mais. A gente aprende.

Além do assédio, que parece tão comum nas ruas e em todos os ambientes, existe esse ranço de superioridade intelectual. Sim, há. E não é só nas Engenharias. Aliás, nesta área os melhores profissionais que eu conheço são mulheres. E sei que elas tiveram que batalhar o dobro para mostrar que são capazes. Porque é essa a nossa vida: mostrar que somos capazes. Até quando? Até quando esse mundo e esses homens vão ficar nos forçando a mostrar que somos iguais? Ou até melhores (e é bem isso que eles não aceitam). Filosofia é difícil pra caramba. Nós, mulheres, também nos destacamos. Nós também somos capazes. Coisa inteligente não é só pra homem.

É triste. É triste ver essas meninas e essas mulheres desde cedo tendo que exibir na testa a sua força – física, intelectual, emocional. A gente queria só viver sossegada, às vezes. As universidades são muito machistas. Porque foram, por muito tempo, dominadas por homens, enquanto as mulheres, no máximo, podiam fazer pedagogia pra cuidar de crianças – porque isso é coisa de mulher. Aliás, curioso o relato de um moço que eu conheci. Ele fazia Pedagogia, único homem da turma, e nem estágio nas escolas e creches ele conseguia porque “um pai não vai querer que um homem cuide da filha dele”. O reverso é raro, mas é verdadeiro.

Sofremos muito preconceito em sala de aula na Filosofia. Teve uma professora que um dia nos chamou de galinhas. Simples assim. Nada aconteceu. No relato da minha ex-aluna ficou claro que não farão nada, na reunião de departamento disseram que só os casos reportados deverão ser examinados e seguir o que rege as regras da universidade. A gente sabe no que vai dar.

A gente aprende. A duras penas, mas aprende. E quanto mais cedo, melhor. Ser mulher não é pra qualquer um. Mas nós somos e estamos fazendo cada vez melhor. Levo minhas culpas comigo, para fazer ainda mais, dia a dia. O que aprendi foi a ser menos omissa. Parece pouco. Pouquíssimo.

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