Ontem foi o dia da Morte do Cinema Brasileiro. Foram anos gloriosos, alguns não tanto, não por culpa dele mesmo, é claro. Fazemos e assistimos ao cinema brasileiro desde aquela famosa filmagem na Baía da Guanabara, em 19 de junho de 1898. Para além da discussão de datas, se devemos comemorar a primeira filmagem ou a primeira exibição, a vida e a permanência do nosso cinema sempre esteve ameaçada.
Ontem faleceu o ator Paulo Gustavo, vítima de covid-19. Um dos atores de maior sucesso do nosso cinema, campeão de bilheteria, popular e talentoso. Considero, portanto, digno marcar a data como a morte do Cinema Brasileiro. Os últimos suspiros foram Bacurau e Democracia em Vertigem, provavelmente, antes de alçarem ao poder este governo de genocidas. Morre com Paulo Gustavo toda a última Era brilhante e profícua do cinema que tanto nos orgulha, pois desde a última eleição o cinema tem sido paulatinamente destruído e sufocado.
O mesmo governo que faz campanha pela morte dos seus cidadãos, incitando violência, caos, irresponsabilidade e tratamentos ineficazes diante de uma pandemia é aquele que destruiu as políticas públicas de cultura, censura e censurou obras e artistas e propaga o ódio à esta classe trabalhadora. Nem quero comentar a desfaçatez do presidente em dar uma nota de pesar pela morte de Paulo Gustavo. Junto a ele foram tantos outros artistas, compositores, cantores, atores e atrizes, técnicos vítimas de um vírus que não teve nenhuma política pública de contenção por parte do governo federal (e de tantos governos estaduais e municipais). Vale ressaltar que instituições internacionais alertam para este assassinato da nossa cultura, apontando paralelos com Rússia, Turquia e Hungria, onde não há leis explícitas de censura, porém o controle silencioso de tudo que é produzido. Dizem elas que estamos praticando a mesma coisa.
Sempre estudamos, na História do Cinema Brasileiro, que o governo Collor foi a “pá de cal” no cinema, quando tivemos um ano sem produções de longa-metragem. O setor todo sentiu, de uma hora para outra, o fim das políticas públicas e apoios à produção cinematográfica. Depois disso, nosso cinema sobreviveu aos anos Itamar, FHC e floresceu nos anos do Lula e da Dilma. Tivemos leis aprovadas, criação do Fundo Setorial, uma real e efetiva estruturação de toda a cadeia do setor, forte presença da ANCINE e de várias regulamentações, editais, patrocínios e financiamentos que permitiram ao setor crescer e se desenvolver. Permitiram uma ligação inédita com o público, permitiram filmes como os que o Paulo Gustavo fazia, foi nessa época que os recordes de bilheteria da década de 1970 foram batidos. O nosso cinema já era reconhecido lá fora (não que isso importe), e o que mudou foi termos um aumento na qualidade e na quantidade de filmes produzidos. Foi nessa época que “ganhamos” espaço na TV por assinatura e nas salas de cinema, nos inúmeros festivais que inundaram o país, e cresceram os cursos na área. Nunca fomos um cinema vira-lata, mendicante, pobre.
As comédias, inclusive, são nosso ponto forte. Campeãs de bilheterias, são elas que falam mais diretamente com o público, vivem cravadas na nossa cultura, nos hábitos e costumes. Por isso mesmo, não são elas que fazem tanto sucesso lá fora, porque é sabido que as comédias tendem a tratar de questões mais corriqueiras e entranhadas numa cultura, sendo, por isso, às vezes mais difíceis de serem compreendidas por pessoas de culturas diferentes daquelas onde foram produzidas. Os atores e atrizes desses filmes caem no gosto popular, participam de tantos programas e especiais, inclusive na TV, que são facilmente adorados e reconhecidos. Quando são bons, é claro, e esses não nos faltam.
Porém, tudo mudou. Antes mesmo da pandemia, projetos que haviam sido aprovados ficaram sem recursos e sofreram censuras e o Ministério da Cultura, criado em 15 de março de 1985 foi aniquilado (no governo Temer houve a tentativa de acabar com o Ministério, revertida sob pressão popular). A ANCINE é vítima de um desmonte sem precedentes, a Lei Rouanet (que só mudaram o nome), está paralisada, não contratam avaliadores, os projetos estão represados nas mãos de um único indicado (ex policial militar). A Cultura, de forma geral, é o bode expiatório deste governo de genocidas, pois é do que eles mais têm medo. Eles têm medo do que somos capazes, porque nós somos muito capazes. Curiosamente, com a pandemia não foi só a produção nacional que sofreu congelamento, pois até mesmo você que ama seu super sucesso clássico hollywoodiano ficou sem ter acesso às salas de cinema – enquanto o vírus circular livremente, ninguém terá acesso à elas e poucas sobreviverão abertas depois.
Quando falamos de um governo que tem como política a destruição – de vidas, da educação, da cultura, do sistema de saúde, do meio ambiente – é a isso que nos referimos. Ontem o cinema brasileiro morreu junto com Paulo Gustavo. Não vemos no horizonte sequer a possibilidade de retomada do setor. Não é apenas um problema de não termos salas de cinema e festivais abertas para exibirmos nossos filmes: a produção, as gravações estão todas paradas. Quer dizer, quem trabalha com cinema, e tem consciência que entrar num set hoje é fazer o vírus circular, está paralisado. Infelizmente, também dentre nós há aqueles que insistem em “produzir mesmo assim” e sequer usam os EPIs adequadamente. É lamentável, ainda mais vindo de pessoas que dizem ser contra o atual governo e seus desmandos, que tenhamos entre nós essa gente irresponsável (é a única palavra que me ocorre). Contudo, a realidade do setor é a paralisação, é a falta de trabalho, é a necessidade. Muitos profissionais do setor abandonaram suas funções e buscaram trabalhos os mais diversos para manter seu sustento, esta é a mais cruel realidade, até porque os auxílios do governo, previstos para a área da Cultura, foram insuficientes e mal distribuídos.
O problema se dá que queremos voltar a trabalhar, só isso. Não estamos pedindo esmola nem nada (a recordar o que tanto falam dos trabalhadores da Cultura). Queremos que o número de contágios e o número de mortes seja controlado com medidas eficazes oriundas do setor público – e, não posso deixar de lembrá-los, da própria população. Sei que há, apesar de não saber o que se passa na cabeça de pessoas assim, quem defenda que não precisamos de cinema aqui no Brasil. Essa gente não se importa com a produção cultural do próprio país, acredita que não temos nada de qualidade, prefere assistir a outras coisas (de origem e qualidade duvidosas, inclusive) e, para piorar, ignora que somos muitos trabalhadores que vivem disso. Assim como uma pessoa escolhe ser advogada ou encontra sua vocação no design, na engenharia, nas vendas, e em qualquer outra profissão, nós temos o nosso conhecimento, formação e amor à profissão no cinema. No mínimo, é ignorância e egoísmo achar que não temos direito a isso.
Não temos previsão de retomada. Aliás, curioso usar esta palavra: “retomada”. É por ela que conhecemos o período que segue o “fim” da Era Collor. O Cinema da Retomada é o período quando voltamos a respirar, retomamos o fôlego, mostramos a nossa cara – o marco, inclusive, é um filme muito popular e excelente: Carlota Joaquina. Fazemos rir e rimos de nós mesmos. Hoje a realidade nos cala, não duvido que na próxima “retomada” nós ainda riremos muito disso tudo – o talento do nosso cinema e dos nossos roteiristas, diretoras e diretores, atores e atrizes nunca deixa de nos surpreender. Acredito que antes disso ainda entraremos em choque com os documentários e ficções que nos levarão a refletir sobre tudo isso que temos passado: com socos no estômago e tapas na cara. É, afinal, para isto (também) que estamos aqui.
A maior culpa é do governo instituído e composto por genocidas (lembrem, ninguém faz um governo sozinho). Porém, cada um de nós que faz o vírus circular também é culpado. Muito culpado. Cada um de nós que tomou atitudes irresponsáveis (indo à praia, à festas, ao supermercado, ao bar porque “o dia está tão lindo”, dizendo “ah, eu já peguei mesmo” e tudo mais que nem tenho mais paciência para listar) é responsável pela morte do Paulo Gustavo e dos mais de quatrocentos mil mortos. Chega de querermos só responsabilizar os outros, né? O desemprego, a crise e as mortes são culpa de cada um que não teve consciência e tornou-se cúmplice do governo de genocidas. Nós só queríamos trabalhar com segurança. Só queríamos viver este sonho que é trabalhar com cinema e audiovisual, no Brasil. Só queríamos estar vivos. Enquanto estamos paralisados, sem produzir, muitos de nós morrem, como o Paulo Gustavo e o nosso Cinema. Eu quero crer que voltaremos, um dia, com toda a força que tentam nos tirar. Hoje, eu só me revolto e lamento o sucesso que os genocidas e seus cúmplices alcançaram.
Quando for a data da Nova Retomada eu voltarei com alegria e desforra a escrever aqui.
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