Sempre uma de nós

A Fernanda chegou no início da madrugada em casa, numa kitnet onde morava sozinha. Futura Engenheira, jovem, tinha ido a um evento naquela noite. Em pouco tempo, seus gritos foram ouvidos. Um vizinho entrou, violentou-a, roubou sua TV.

Uma jovem caminhava pela Beira-rio, um homem agarrou-a, em plena luz do dia, e assediou-a (ou violentou-a, como deveria prever a lei, mas, são homens que fazem as leis).

Nunca vou esquecer daquela que foi encontrada enterrada numa praia da região, o marido era policial.

Todos os dias, sem falta. Uma de nós, sempre.

Tento não ficar obcecada ao acompanhar esses casos, porém não os evito. Não há como evitá-los – a não ser que você entre num perfil de rede social de alguma grande empresa de notícias de SC e viva aquela realidade onde não há sequer menção aos casos de violência contra a mulher.

Todo dia, muitas de nós, a cada minuto. A cada segundo.

Filmes sobre violência contra mulher, feitos por agressores de mulheres. Exibições de filmes sobre violência contra mulher, exibidos por agressores de mulheres. Agressores de mulheres em sala de aula, como professores. Agressores de mulheres nas câmaras de vereadores, como representantes do povo. Agressores de mulheres nas polícias, como defensores da lei. 

Agressores de mulheres, por onde quer que eu olhe e onde quer que eu vá.

Todos os dias, uma de nós.

Viver concentrada em não dar chance, em não dar bola, em não dar a entender o que nem foi sequer pensado. Viver sob a tensão de um botão do pânico. Não há agradecimento do tamanho da dor da Maria da Penha, ela, por nós – por quantas mais de nós?

Não acaba. Não deixa de existir por um único dia.

Ela estava na Avenida Atlântica, de Balneário Camboriú, uma das ruas mais conhecidas de Santa Catarina. Ele desferiu um tiro à queima roupa nela e depois tentou tirar a própria vida.

Minha vizinha, som de socos, gritos, liguei pra polícia. Eu devia ter ido ajudar?

Estatísticas, números, epidemia. Nove estupros por dia. Quase 90 mil casos de denúncias, 10 casos de violência doméstica por hora. Por. Hora.

Na praia, ela caminhava sozinha. Ele surgiu do nada, assediou-a, agrediu, violentou. A cidade que é uma ilha começa a preocupar-se com as inúmeras praias, lugar onde também não temos paz nem segurança.

Foi morta e teve seus órgãos arrancados, pois denunciou o marido. Agrediu a vizinha, porque discordou de qualquer coisa. Duas jovens na trilha do Morro do Morcego, paisagens lindas, ambas estupradas. 

Sempre uma de nós.

Aquela menina de doze anos na região sul da cidade.

Todas as horas, uma de nós.

Não parar de bater as pernas, para continuar viva. Todo dia.

Com quantos agressores, estupradores, assediadores, condenados ou não, topamos em um dia? Todos os dias?

Sempre uma de nós.

Ontem fui eu. Hoje eu escapei. Amanhã talvez seja eu novamente. Porque não foi nem nunca será minha culpa. A culpa não é de nenhuma de nós. Mas, sempre uma de nós.

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