A banalidade do mal e a vida feliz

Esses dias eu comentava o filme The Zone of Interest e acabamos falando sobre a “banalidade do mal” (eu vi que teve muita discussão sobre isso, se ele seria um representante do conceito ou não e tal, mas não era o meu ponto).

A banalidade do mal, de Hannah Arendt, é um dos temas mais fascinantes que conheci na vida. Não sei bem o motivo, mas ter lido Eichmann em Jerusalém me marcou profundamente (assim como tantas outras histórias da Segunda Guerra, já devo ter comentado várias delas como Areia Pesada e Primo Levi). Além do livro, que espero poder reler na maturidade visto que li quando tinha vinte anos, os filmes sobre Hannah Arendt que passam pelo tema e também assistir aos vídeos do depoimento real de Eichmann são impressionantes. Sabemos como a adaptação em livros, filmes, séries mantém acesa a nossa chama por determinados assuntos – mesmo adaptação de fatos reais.

Quer dizer, acho que eu sei bem o motivo desse meu profundo interesse pelo tema. Desde muito cedo eu tive contato com a maldade humana no seu pior tipo e tentar compreendê-la, desvendá-la ou somente observar e analisar é algo que trago comigo a vida inteira. Li um bom tanto de psicologia para acompanhar o que se estuda sobre isso e sou adicta de literatura de crimes, comecei com o bom e velho Conan Doyle, segui naturalmente para Agatha Christie e depois foi algo mais abrangente. Também fui fissurada (era, na época, o único programa que me prendia na TV) no Linha Direta, ano passado ouvi todos os capítulos do novo Linha Direta no podcast. Gosto muito de ler e ouvir sobre criminalística, ciência forense, investigações e tal.

A maldade humana é, talvez, o tema central da vida que eu mais acompanho, visto que ser uma pessoa que pratica crimes e maldade contra o próximo é algo que não tem explicação. Quando se é vítima da maldade humana, aquela maldade pura e simples ou mesmo com interesses, a gente aprende a conviver com a realidade de um jeito diferente. Eichmann só fazia um trabalho bem feito, assim como tantos outros funcionários e até servidores públicos naquele período e nos dias de hoje.

Praticar a maldade deve proporcionar algum tipo de prazer, como dizem especialistas, por isso tantas pessoas são levadas a gozar com a dor do outro. A maldade também provê interesses e lucros, sejam econômicos, pessoais, familiares, etc. Acusar falsamente que alguém assassinou outra pessoa, para poder ficar com seus direitos da herança, por exemplo, é um lucro pessoal (o acusador quer o mal do inocente) e também econômico (terá mais dinheiro da herança para si). Quando você consegue ter uma certa frieza e experiência, fica mais fácil identificar esses propulsores da maldade alheia.

Quando um ex-aluno frustrado que defendia um ser abjeto que jamais foi filósofo e se formou assistindo aos pseudo-documentários daquela produtora que diz reescrever a História, quando esse aluno nunca teve coragem nem argumentos para te desmerecer enquanto professora, mas utiliza-se de cargo público para tentar te prejudicar profissionalmente, porque você produz e tem público para o teu discurso, enquanto ele não consegue muito na vida, você entende a maldade como um escape para a frustração da realização pessoal.

São inúmeros os exemplos. Tem muita gente, como no filme, que só quer uma casa com quintal bonito, um salário todo mês nas mãos para pagar as contas da família. E a quantidade de gente que usa qualquer meio para alcançar isso é incalculável. Tem gente que só se irrita com uma criança que nunca quis colocar no mundo. Tem gente que faz qualquer coisa para ser aceita num grupo, ou pela pessoa que ama. Os objetivos das pessoas as levam a caminhos duvidosos, perigosos e criminosos – mas hoje não é dia de falar de Maquiavel.

Eu entendo como um mero servidor público quer me prejudicar porque eu fiz algo que incomodou-o e, por isso, vestido da sua autoridade enquanto ocupante de um cargo público, ele fará de tudo, inclusive abusando de irregularidades e cometendo crimes, para me calar. Eu conheço a maldade humana, eu sei que isso é perfeitamente possível.

Mas, também, penso naqueles que não querem fazer isso, que são boas pessoas, que estão somente defendendo o salário que paga as contas da sua família. Seriam todos eles Eichmanns? Cada um que se abstém de denunciar as irregularidades dos seus colegas, que assina documentos que são legítima prova de perseguição política, também são cúmplices, coautores dos crimes. 

Felizmente, através da reflexão e do entendimento que tivemos ao longo da história da humanidade, não cogitamos mais ser a banalidade do mal um argumento plausível em defesa dessas pessoas. Nós não assistimos à The Zone of Interest e conseguimos justificar aquelas pessoas (mesmo com a atuação brilhante de Sandra Hüller) porque, afinal, o jovem casal sonha ter sua casa e um trabalho desde quando eram adolescentes. Não podemos passar por cima de qualquer um e de qualquer coisa para termos o que queremos na vida, é uma regra simples e básica. Talvez, como diria um professor que tive, por isso mesmo tão difícil de entender.

Sobre o filme, não sei de qual lado fico entre os que defendem que ele é uma representação do conceito e os que dizem que não é. Prefiro me ater ao filme no seu ponto de vista tão bem escolhido, na narrativa potente (de imagens e sons), nas atuações brilhantes. Prefiro pensar como é bom fazer cinema que apaixona, que desencadeia debates, que nos leva a ser persona non grata, pelos filmes que produzimos e pelos discursos que proferimos, de certos grupos ideológicos (Glazer não perdeu a oportunidade com o seu discurso de agradecimento, nós não fazemos somente arte nas telas, nós somos seres políticos – já dizia Arendt e a Filosofia desde Aristóteles). Que façam inúmeros berreiros nos palanques e assinem cartas o quanto quiserem, a maldade humana raramente surpreende.

A “solução final”, inclusive, foi buscada através da expertise do Eichmann e de outros porque levar os soldados alemães a cometerem assassinatos frios era caro e estava causando danos mentais neles. Quando os soldados alemães tiveram que assassinar seus amigos de escola, seus vizinhos e professores, com uma bala na nuca de cada um, o problema estava instaurado. Era caro e as tropas ficavam abaladas. Assim, entendemos que as decisões “de gabinete” solucionaram o problema que era praticar um genocídio. Os instrumentos de um crime também pagarão o preço pelos seus atos, seja com um processo e condenação, seja a própria consciência – e há quem acredite que orar o resto da vida pedindo perdão vai resolver. 

Quem sabe Deus criou a maldade humana justamente como o maior desafio para a vida feliz.

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