Os ensinamentos de quando acaba

Poderia ser simples como ouvir o canto dos pássaros, ou quem sabe morder uma maçã. Deixar sentimentos pelo caminho não deveria ser tão difícil – pelo menos no começo. Cada separação, cada amor desvanecido no convívio ou no vazio, deveria encerrar-se com um sorriso e um aperto de mãos. O choro vertendo, o coração descompassado, os gritos: a gente sempre sabe quando é o primeiro fim. No segundo dói um tantinho menos. No terceiro até a resignação aparece. Depois, dizem, vira coleção. Tem uns que a gente até esquece, de tão apático que nos sentimentos ao dar adeus. Eu diria, ainda, que chega uma hora nem adeus mais a gente dá. Acaba por acabar e está tudo bem.

Às vezes restam lembranças aqui e acolá. Para justificar que, quem sabe, foi verdadeiro. Ah, vai, foi mesmo. Porque lá nos primeiros a gente ainda pode ter a teoria “se é verdadeiro nunca acaba, se acabou é porque não era verdadeiro”. Ah, se a vida fosse como nós a imaginamos até os vinte anos! Às vezes, acaba. Mas o fim não nega o que houve. Só deixa de existir – por tantos tropeços e recomeços da vida que é impossível traçá-los em preto e branco. O fim nunca apaga tudo. O porvir nunca será imune ao passado (infelizmente, em muitos casos).

Foi verdadeiro, mas acabou. Aí a gente pensa que “nunca mais”, até o próximo, é claro. Porque a gente não quer passar por tudo aquilo novamente – e, por uma questão de proximidade do tempo, pensamos só na parte ruim, no fim, no adeus (que não houve), na separação dolorosa (ou não). Às vezes faz tanto tempo ou foi tão complicado que já sentimos distante o começo, a parte boa, os melhores momentos. Não sei vocês, mas o que é bom a gente pede bis, sim. Dá trabalho. Ah, dá! Ninguém diga que não. Conhecer o outro, desvendar-lhe os jeitos, olhares e manias, encantar-se com os pensamentos, coordenar rotinas e ajustar o tempo juntos. Dá uma porrada de trabalho. Mas compensa – aliás, dos poucos trabalhos que compensa na vida.

Quem sabe seja a última vez, nunca se sabe. Talvez desta vez os momentos bons predominem e a gente queira sempre ficar junto. Quem sabe a rotina e já saber ao outro de cor e de olhos fechados seja, ainda, um delicioso despertar dos sentidos. Talvez, desta vez, a gente não tenha uma lista de motivos para não querer nem dar adeus. Às vezes, acontece. E depois de ter sido tão longo o caminho a aprender a dizer adeus (sorry), este ensinamento da vida não nos seja mais útil nem se faça necessário. Porque é como na escola, a gente aprende a duras penas tanta coisa que depois de algumas provas nunca mais verá na vida. Em última instância, quem sabe, vale o aprendizado. Porém, difícil é aprender sem chorar, sem sofrer. Mas depois das lágrimas secarem, vocês sabem, os sorrisos sempre voltam. Às vezes, pra ficar.

(se) Insurgir

Levarão nossas mulheres

levarão nossos sonhos

e noites de núpcias

levarão nossas moedas


Tomarão nossas casas

nossos caminhos

e nossos olhos

tomarão nossas colheitas

nossa fé e nossas crenças


Farão nossas tradições

nossos cardápios

e nosso porvir


Levarão nosso sangue

nosso corpo

nossos corações

e nossas defesas


Tomarão nossos copos

nossas alianças

nossos pés calejados

e nosso baú de saudade

tomarão nossas vozes

e nossos ataques


Farão nossos enterros

nossos velórios

e nossa eternidade


Olharemos

de mãos cruzadas no peito

a carpir o choro

à espera, ainda,

do nosso salvador.

Nosso medo

Há dias que tudo o que se quer é uma boa noite de sono. Você deita querendo espantar o cansaço e adentrar o mundo dos sonhos. Mas, no meio da madrugada, o cachorro late insistentemente, late de forma agressiva. E você levanta para ver o que é. Na rua, um rapaz agride, física e psicologicamente, uma moça. Ela chora. Cachorros, vocês sabem, não toleram agressões. Nós também não deveríamos.

Caso você fosse um homem, eu diria que deveria intervir. Homens, diante do olhar dos seus iguais, tendem a recuar – quando sabem que estão errados. No caso, porém, era eu. Fiquei com receio de intervir e, por ser mulher, acabar junto à vítima. Recorri de imediato ao telefone. Na primeira ligação, “qual a sua emergência?”, só deu tempo de dizer que denunciava um homem batendo numa mulher na rua – a ligação ficou muda. Na segunda tentativa consegui fazer a denúncia e “Está registrado, se der enviaremos uma viatura”. Voltei para acompanhar o ocorrido, a moça havia se levantado (ela chegou a ficar no chão) e as agressões e ameaças verbais continuavam. Mais alguns minutos e eles seguiram. A polícia não apareceu.

Não foi a primeira vez que liguei para a polícia denunciando o mesmo tipo de agressão. Num caso era minha vizinha de porta de apartamento. A última vez foi uma menina sendo agredida pela rua, jogada contra o portão de casa. Em nenhum caso a polícia se fez presente. Em todas, me senti tão amedrontada quanto as vítimas. Toda mulher sabe o que é isso. Todos os homens também deveriam saber. Em todos os casos, como nesta madrugada, várias pessoas foram testemunhas. Ninguém fez nada. Ninguém faz nada. Nós não fazemos nada. Nenhum homem parou o carro e defendeu aquela moça. Eu já disse aqui e repito: enquanto os homens não entrarem nesta briga, seremos só feministas, feminazis, mulheres de mimimi. Tem mulheres, inclusive, que pensam assim.

Não somos só estatísticas. Somos mulheres agredidas diariamente. A moça desta madrugada tinha menos de vinte anos, com um vestido lindo, corpete salmão e saia rodada de tule preto. O cara que a agredia era algum amigo ou namorado. Ela chorava e ele a chutava. Acusava-a de não ter noção e decência. Ameaçava “vou ligar pra tua mãe” e chutava aquele corpo bonito e jovem encolhido no chão. Depois, ela chorava mais alto e acusava-o de alguma coisa ao que ele retrucava “foi sem querer” e ela “é sempre sem querer”. Meninas, moças, mulheres: todas somos vítimas de relacionamentos abusivos. Percebam o tamanho da estupidez e segurança deste idiota ao ameaçá-la de telefonar para a mãe, pois ele tem certeza que ela jamais denunciará sequer à mãe a agressão.

Eu nunca consigo saber o que é maior: minha revolta, meu medo, minha empatia, minha insegurança, minha covardia. Eu voltei para a cama. Tive sucessivos sonhos ruins. Os traumas e lembranças não perdoam. Toda mulher vive com eles, escondidos lá num canto, sem querer vê-los, mas jamais serão abandonadas por eles. Era só uma madrugada de sexta para sábado, eu queria dormir até mais tarde, eu queria repor as energias e pensamentos das últimas semanas exaustivas. Aquela moça só queria divertir-se, dançar, aproveitar a vida. Nenhuma de nós teve o que queria porque a realidade de ser mulher nos assombra quando menos esperamos. Eu quero vencer o medo, quero poder fazer mais do que pedir ajuda quando testemunho uma igual sendo agredida. Eu ainda não consigo.

A culpa não é do funk

“Meu filho gosta de funk!” parece ser a queixa dos pais brasileiros contemporâneos. Eu não me preocuparia com o funk. Sobre sexualidade acerbada não vejo novidade na canção popular. Preocupa-me, sim, a ausência de questões sociais e de grande importância atuais na canção popular de um modo geral. Parece, então, que só sofremos por amor – não sofremos mais com a desigualdade social, com o avanço da criminalidade, com a destruição da urbanização, com a educação precária. Nossos temas populares fixam-se na sexualidade, na dor de cotovelo (parece que esta sempre sentimos) e na ostentação. Ah, sim, lembrando que substituímos o “liga pra mim, não, não liga pra ele” pelo “troco likes”. Mera atualização.

Pergunto-me, os pais queriam que seus filhos gostassem de Schubert (exceto os virtuoses, claro)? Quais as oportunidades que eles mesmos dão aos seus filhos para que gostem dele? Ou, sei lá, os pais conhecem Schubert? Precisamos dar oportunidades de conhecimento cultural a eles, e certeza que isso não se resume a pagar o boleto da internet todos os meses. Esses pais dançaram macarena e o tchan? Esses pais não ouvem funk? (nem nas festinhas com os amigos?)

Um bom exemplo está nas telenovelas. Não há nada que acompanhe tão de perto nossa realidade do que elas na última década. Foi, aliás, como elas se reinventaram – e ficaram tão, mas tão, tediosamente chatas (mera opinião). As novelas tiveram que ir às favelas, empregadas domésticas foram alçadas ao protagonismo (e ao sucesso, claro, que a fórmula continua a mesma), a suburbana virou mocinha. É a telenovela que nos faz ver todos os dias uma moça policial que busca justiça e sofre nas mãos dos bandidos (que também têm família e coração, claro). De tanta realidade e politicamente correto, eu diria, elas perderam o seu encanto (aquele da fantasia, da metáfora, da crítica).

Assim, a canção perdeu seu encanto. A literalidade do funk parece-me desanimadora. Quem dera nossas crianças de hoje entendessem o que é uma metáfora, aí sim talvez tivéssemos funks metafóricos. Se os pais sequer ensinam poesia e figuras de linguagem aos filhos, se não os iniciam no mundo da fantasia, como querem reclamar do gosto pelo funk? O funk não é o problema. A canção popular também perdeu o seu encanto com duplas e solitários em busca do mero sucesso, dos carrões, mansões, jatinhos e investimentos – tudo alicerçado na venda da própria imagem (assunto para a próxima, prometo). Eles também não estão preocupados com profundidade alguma nos seus versos mais curtos que os tuítes. Ganha o mercado, ganha o artista. Perde a canção, perdemos nós.

Deveria chocar qualquer um de nós o fato de uma criança de onze anos nos prevenir, sobre um funk, “mas é pesadão”. O funk pesadão, em si, deveria nos chocar. Talvez tenhamos perdido o dom de nos chocar. Ou, talvez, choque uma criança alguém parar para ouvir Schubert. Diriam que é um comentário de quem parou no tempo. Mas eu duvido muito que a cultura pare no tempo. Ela, aliás, é o melhor retrato do seu tempo. Um dia tiraremos estes retratos envelhecidos da gaveta, para provocar a memória. Estaremos diante do quê?

Páginas em branco

Enquanto dormeseu escrevo furiosaas palavras que não se achegame penso no que me consomeem crimes desumanose estratégias viseu penso no trabalho da semanano quanto quero viajara subir escadarias e mirantesao teu ladocorro este tecladoatrás das idéias fortuitasque me abandonaramenquanto dormesquero que creiamno quanto tenho a dizermesmo quando tenhopáginas em branco a oferecer.

Quando ele vem

Quando ele vem, o sol esquenta a porta da frente de casa. O ar fica leve e meu sorriso – que é todo para ele – aflora. Este sorriso, que é dele, às vezes deságua em gargalhada, por vezes em risos frouxos e cócegas, e de vez em quando até entre olhos marejados. É no ombro dele que lágrimas silenciosas dizem tudo o que preciso. E me deixam pronta pra outra. Ele é sempre bem-vindo e tem seu lugar à mesa do almoço. É por ele que eu espero a semana inteira – quando não há os, também santos, feriados e folgas.

Antes de tudo eu quis o abraço dele. Eu, que nunca gostei de abraços – ainda não gosto, só do dele. É neste abraço que eu gosto de estar depois de dias e noites de tanto trabalho e agruras da vida. Essas que a gente tem que suportar, lidar, resolver e seguir em frente. Ele diz que eu sou boa nisso. Eu cá tenho minhas dúvidas. E quando eu pergunto como faremos com os percalços, ele me diz que passaremos por eles e os deixaremos para trás. Acho que nunca ouvi algo tão lindo. E, aliás, devo sublinhar as respostas perfeitas que ele dá (eu, que sou a lady das perguntas).

Quando ele vem, as gatas miam em algazarra. Meu cachorro agora tem seu melhor amigo. E eu nem sinto ciúme. A gente divide bons sentimentos numa boa. Ele toma meu tempo, quase todo meu tempo. E não saberia mais outra forma de ocupar as horas.

Quando ele vem, visto meu melhor humor ao acordar – mesmo que mal tenha dormido algumas poucas horas. Vasculho meu lado bom e distribuo minhas alegrias. Nem sempre, porém, sou só sorrisos. Ele já esteve ao meu lado nos piores momentos. Já ouviu meus impropérios (e acho que sou bem boa nisso). E ficou, ali, ao lado. Não só me abraçou como me levou ao alto do morro para termos aquelas conversas sinceras, profundas, entre almas que se entendem. E quando estou imersa em problemas, ele fecha janelas e cortinas ao anoitecer. Eu reparo.

Quando ele vem, até o dia na cidade fica bonito – com a chuva fina a nos levar para debaixo do cobertor ou o sol a nos garantir uma tarde no quintal. Nesses dias eu garanto o almoço me exibindo na churrasqueira. Ou apenas relembramos nossa história a confundirmos dias e meses. Ou desejamos nossas próximas datas juntos.

Quando ele vem de surpresa, é que eu tenho certeza.

Jaulas

Nos prenderam numa jaula e nem disseram porquê. Pediram que nos comportássemos. Pediram, claro, mas como quem manda. Porque sempre há quem manda. Preferimos não ver, não discutir, não nada. Só de vez em quando, por algum desencargo de consciência, nos rebelávamos. Como crianças a deixar pingar o picolé na blusa. Era só isso mesmo que nós conseguíamos fazer, não íamos muito além. Éramos fracos, somos fracos. E a jaula ali estava para nos enfraquecer. Como e porque, jamais saberemos. Por que nos queriam mais fracos do que já somos? Também não sabemos dizer. É que toda essa fraqueza limita nossos pensamentos, dentro da jaula não podemos pensar, nem questionar. Sentamos bonitinhos (porque somos bonitinhos no começo) a repetir a ladainha de todos os dias como eles nos (dizem que) ensinam. Eles ensinam. Deve haver algo nobre nisso. (Eu não saberia dizer.) Mas eu estava falando de como somos fracos. Repare. Somos, quase todos. Os fortes revidaram e não levaram a melhor. Porque a jaula era a mesma para todos – e somos cada um. Ninguém percebia que não tinha como dar certo? (Eu que pensava assim. Só eu?) Mas dava, vejam vocês, porque o poder e a força não estavam conosco. Eles, porém, sejamos justos, também haviam estado naquela jaula – agora só viviam em outra. Talvez eles tivessem entendido tão bem como funcionava aquilo tudo, por isso agora eram os que controlavam a jaula – de dentro da sua outra. Existem, então, ainda outras jaulas. Existem, não duvide. Conforme o nosso comportamento nesta, saberemos para qual iremos depois. Viver sem jaulas está fora de cogitação. Eu sei, meu amigo, é desolador – mas só para alguns, sabia? Sim, porque somos tão fracos e enfraquecidos que a maioria de nós jamais conseguiria viver sem o suporte e a força das jaulas. (Eu gosto de pensar que não sou dessas.) É tudo fantasia. Eu sei, eu sei, desmonta a idéia da coisa toda, desmonta esse texto, a divagação, a metáfora, tudo. Mas é fantasia crer que pode-se viver fora das jaulas. É uma condição, e é humana. Ou Humana. Sei lá, viu, porque os macacos devem ter suas jaulas também. Não? Quem sabe os elefantes ou as girafas. Talvez, então, uma condição do Ser. Para Ser é preciso estar na sua jaula. Não existe vida fora das jaulas (daria uma boa campanha publicitária, caso eles precisassem disso, obviamente). A força não precisa nos convencer de nada, ao contrário da publicidade. A publicidade, aliás, você sabem, faz parte de uma boa parte de jaulas. Onde fomos parar? Era pra ser só sobre a jaula, aquela primeira. A que nos mortifica os anos iniciais da vida. A que nos rodeia dizendo que é o melhor para nós, para o nosso futuro e, pá, acaba com nossos melhores dias. Ela encarcera sem que nós percebamos, sem que tenhamos desenvolvido capacidade de escolha ou sequer sentidos e noções para compreender o que ocorre conosco. É assim, entramos na primeira jaula sem nem saber como as coisas funcionam, assim nos tornaremos mais fracos (eu disse) e aceitaremos como as coisas são. Mas elas podem não ser. (Eu me agarro, às vezes, a isso – tão incerto.) Não sei direito o que aconteceu com as pessoas que fugiram da jaula (eu mesma já tentei e acabei voltando). Desconfio, porém. Ou apenas imagino. Se é condição, só a morte pode ser libertadora. Mas aí também não tem vida, nem escolha, nem opção. (Eu descarto, há quem não.) O que me incomoda de coração é que eles nem limpam a jaula, sequer lustram suas grades ou passam um perfume. Não as tornam minimamente atraentes. Poxa, acho um desrespeito. É assim que terminam nossas indignações. Rasas a reclamar de uma pintura nova para o mesmo velho de sempre. É assim. Somos fracos (eu disse).

Pela janela

Sabiá a catar

folhas secas

frio se faz

entre dias

de estiagem

e não chove

e não chove

e não chove

Sabiá a repousar

o olhar

sobre as árvores

a esperar

a Primavera

e choverá

e choverá

e choverá

Adormeço II

Vem o frio

o tempo se desmancha

em janelas abertas

 

É férias

trouxeste malas

e um casaco

 

O trem

deixou a estação

rumo ao nosso coração

 

Peço ao ponteiro

“pare!” feito

chuva congelada

 

Na serra há geada

e na segunda

nós no sofá

quando, por fim

eu adormeço

no teu colo

A vida na cidade

Eu sentia a cidade diferente. Faltava algo por ali. Vida. Havia pessoas, sem dúvida. Havia árvores, também. Mas algo faltava… no ar, quem sabe, não era Primavera, as flores não perfumavam as esquinas. Ainda não era isso. A cidade nem crescera, nem chovia menos. Prometo não entrar naquele papo de “quem mudou fui eu”. O cheiro ruim das fábricas também era velho conhecido – desconfio que jamais mudaria. Lojas que fecharam e outras que abriram no seu lugar. Era outra coisa…

Eu vinha do interior. As cidades tinham vida, os olhares se cruzavam pelas ruas. Acenos de cabeça a desconhecidos. A lanchonete oferecendo sopa àquela hora da noite, única de portas abertas no frio que arrasava esta terra. Um velhinho tarrafeava próximo ao píer, num repetir de gesto e vazios entre fios. Nada de peixes. As igrejas e seus sinos. Os alambiques no silêncio abençoado. O vento arrebatava os topos das árvores. Nós parávamos para contemplar o entardecer.

Agora eu percebia a diferença. Os cachorros e gatos pelas ruas. Eles se espreguiçavam pelas praças, nos seguiam abanando o rabo com aquele olhar cobiçoso ao nosso sanduíche. Os gatos, nas manhãs de domingo, preguiçosamente lambiam as patas sobre os muros. As crianças, nos dias de calor, gargalhavam entre guapecas e mangueiras esfuziantes de água fria. Era essa vida.

A cidade grande civilizara-se. Agora preocupávamos com tudo – e todos, claro. Todas as nossas mazelas deveriam ser superadas – ou devidamente escondidas das nossas vistas. Os cães agora dormiam em caminhas confortáveis, cheios de cobertas e brinquedos, e comiam sentados às mesas com seus tutores. Tutores, pois dono é quem possui algo ou alguém, o que não é o caso, agora os seres humanos civilizados apenas tutoram a vida dos animais. Me perguntei: se o cachorro quisesse partir, então seu tutor deveria deixá-lo. Certo?

Na cidade grande ainda havia outro tipo de vida. Eram essas pessoas que vagavam pelas ruas e dormiam sobre papelões. Era uma vida que não precisava de tutoria. E era uma vida que mortificava a vista do entorno. Não dava vida.

Eu sentia a cidade sem a vida que se criava ao rés das possibilidades. Observava como havia poucos cães e gatos a olhar pelos portões – mas muitas janelas de prédios com redes. Eu passava pelas casas ansiando vê-los agora bem alimentados, felizes, de banho tomado (toda semana no pet shop, é claro), e atrás dos muros e grades e portões a correr pelos gramados. Eu imaginava como era perder a liberdade. Sair da rua direto para um apartamento de um quarto espremido entre milhares de outros apartamentos assim diminutos. Ou, quem sabe, para o canteiro minúsculo de um geminado. Eu ouvia latidos e choramingos de segunda a sexta, das oito da manhã às seis e meia da tarde.

A vida da cidade agora residia sob roupinhas engraçadas e lacinhos dourados a dormitar sobre sofás, estressada a correr atrás do próprio rabo e condenados a dermatites sem cura.

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