Olhar noturno
sobre o lençol amassado
a névoa do desamparo
nem um bilhete
perderam-se as horas
no escuro
Um soluço
na almofada calado
o coração de retalho
nem a porta bateu
perderam-se os amantes
no desamor
Olhar noturno
sobre o lençol amassado
a névoa do desamparo
nem um bilhete
perderam-se as horas
no escuro
Um soluço
na almofada calado
o coração de retalho
nem a porta bateu
perderam-se os amantes
no desamor
Repare nestes corpos que estão à volta: em plena Primavera malhados e sem o suor sob o ar condicionado das academias. Logo será Verão e eles precisam se exibir à beira de piscinas e mares. Mas, veja, eles ficam exaustos dos pulos, das roscas, dos agachamentos. São corpos que não sabem mais (ou nunca souberam) o que é fazer força, sentir os músculos estirados ao sol com uma pá na mão, por exemplo. Repare, eles correm quilômetros intermináveis nas esteiras percorrendo parques imaginários.
São corpos que caminham sem sair do lugar. São mentes que possuem olhos que não vêem nem além da parede envidraçada das academias. São corpos que não caminham mais. Isso me diz o estacionamento lotado desses novos templos de Apolo, isso me diz a vizinha que não anda duzentos metros até lá. Por uma questão também de status, só andamos de carro – ou de moto, quando muito por necessidade. Inventar a roda nunca fez tanto sentido para uma humanidade falida presa aos freios do motor.
Nem o preço da gasolina, nem a tal vida saudável, nem nada. Nada mais nos faz andar a pé. Talvez nem os bebês mais se preocupem com isso, logo logo. Os pais perderão aquele momento emocionante de ver as perninhas trêmulas sustentarem-se sozinha e titubeantes. Porque não andamos mais a pé. E assim perdemos a força natural que o corpo desenvolve com o movimento essencial à vida. Preferimos modismos a simular os movimentos do corpo num cross qualquer a, simplesmente, fazê-los.
Simulamos demais a vida. Dentro de academias, dentro de computadores, dentro de selfies que não nos dizem nada. Não andamos mais a pé. E assim perdemos todos os entalhes do mundo ao nosso redor. Perdemos os pequenos detalhes que as ruas e as vistas panorâmicas nos proporcionam. Vamos de carro daqui até ali, paramos em frente de onde queremos e sequer nos preocupamos com o entorno.
Caminhar, e não a fatídica “caminhada” por ordem médica que é dar umas voltas pelo bairro fofocando ou absortos em fones de ouvido. Convido a caminhar, pé ante pé, a subir e descer morros, a entrar em ruas desconhecidas, a fazer pequenos serviços e burocracias cumprindo distâncias sobre os próprios pés.
Convido a esquecer nossa submissão humana de encurtar distâncias com o olho no relógio e adequar a vida à distância do tempo. “Estarei aí em uma hora” a substituir o “Estarei aí em dez minutos”. Ganha-se vida nestes cinquenta minutos a mais percorrendo com olhos, coração e pés a distância que nos separa do tempo.
Caminhar nos fez seres humanos. Nossa humanidade se esvai em canos de escape. Caminhar pelo simples fato de caminhar. De um lugar a outro. Sem prescrição médica. Dando ao corpo o movimento real da vida. Dando à distância o seu tempo. Fica o convite.
Sem licenças
pedidos ou renúncias
ela chegou
sem malas ou passagens
sem avisos prévios
ela chegou
de sorriso no rosto
esperança e despojamento
ela chegou
de palavras sinceras
carinhos e paciência
ela chegou
Revoando tempo e espaço
vestidos e nuvens
ela chegou
Renovando promessas
beijos e laços
ela chegou
Sem peso na consciência
nem passado
ela chegou
sem culpas nem exigências
nem coração em pedaços
ela chegou
Reinventado o céu
sob madrugadas
e sonhos em trens:
ela chegou.
Nossos invernos, meu bem, findaram na última Primavera – aquela que eu te disse que seria inesquecível. Este inverno se esvai sob vestidos frescos e sandálias de dedo. O inverno cansou de se fazer presente em nossas vidas, resolveu dar luz aos dias e calor às noites. Sentiu-se intimidado, logo ele que nos retrai ao excesso de roupas e precauções, com a nossa felicidade e achou melhor não aparecer desta vez… ao que dizem, até sugeriu que a Primavera pegasse leve com as suas famosas enxurradas (lembra da penúltima? que lavou de vez nossos pecados e desesperanças por mais de quarenta dias?) e nos regalasse com o seu amarelo mais doce.
Agora a pouco, nas suas últimas horas, o céu que torrou nossos corações foi sendo tomado por nuvens tristonhas. Parecia até que o inverno estava queixoso de não ter nos dado aqueles dias de cobertas e aconchegos no nosso sofá. Parecia o olhar de um grande lutador que se dá por vencido. O frio penetrante e os teus olhos cabisbaixos deixaram de existir quando entendemos que os adoradores do calor (ensopados de suor) respeitam a saudade dos inverneiros. Ou, quem sabe, que a sedução dos adoradores do calor derretem as desconfianças dos inverneiros sob faróis ao final dos molhes.
Este inverno se esvai com cara de contrariado. Veio, talvez, por pura obrigação. Chateou-se todas as vezes que nos viu aos beijos de sorvete e milkshake. Retirou-se das nossas fotos nos costões ao alto diante de mares com poucas tainhas. O inverno arrefeceu diante do calor dos nossos abraços. Não quis nem chover sobre nossas noites de leituras e vinho.
Sei que fiquei sem fondue. Mas sorri ao ver as amoreiras, a cerejeira, os limoeiros, a jabuticabeira e as pitangueiras a florirem carregadas antes da hora. Descobri, mais uma vez, que meu sangue corre nos veios delas. O inverno, porém, não negou-nos os morangos cada vez mais vigorosos. O amor eu não sei, mas a natureza é sábia.
Nossos invernos, meu bem, serão eternas primaveras a florirem doces frutos que teremos o prazer de colher do pé. Mesmo que, por vezes, os mares de ressaca insistam em aparecer, estaremos juntos a admirá-los, de mãos dadas. Neste último minuto, desejo que o inverno siga em paz para deixar a minha eterna amada Primavera esgueirar-se pelas frestas das tuas incertezas e das minhas irritações. É ela, a Primavera, meu bem, e te prometo: será inesquecível.
A cena: uma mulher com o braço roxo no atendimento de plantão de uma clínica de ortopedia. Chega a filha esbaforida perguntando o que aconteceu, surpresa ao ver a mãe em pé aguardando um raio-X. Em seguida a mãe relata o ocorrido e outra filha aparece, também assustada. Depois surge o marido. Telefones apitam sem parar. O fato: a mulher estava andando numa rua em obras, passou um cara que tentou pegar o celular dela do bolso, ela reagiu e caiu na calçada esburacada. O relato: a primeira coisa que a mulher fez foi avisar a todos do Facebook e Whatsapp, falando em assalto, emergência, hospital.
Os celulares apitavam, ao que as filhas atendiam e contavam a história toda novamente, tentando acalmá-los, enfim, a mãe não tinha ido parar no hospital e estava bem (saiu com uma tipoia).
E bem nesses dias eu me perguntava sobre algo que foi ao encontro do que o escritor Miguel Sanches Neto materializou numa frase (nas redes sociais): Vivemos a era da autovitimização midiática? Uma espécie de performance on line dos constrangimentos sofridos?
Foi, também, por esses dias o fato do estupro de uma escritora por um motorista de Uber. Mas poderia ter sido qualquer caso. Não li, aliás, sobre o caso. Não sei porque, mas evito. Ou, também, não tenho tempo para me manter a par de todos os últimos mais novos escândalos do mundo virtual.
É simples: se eu fosse estuprada, qual seria meu primeiro movimento? Ligar a câmera do celular, relatar tudo e correr publicar nas redes sociais? Será? Por que tudo o que nos ocorre precisa ir imediatamente para o mundo on line? Para que tenham pena de mim? Para que me “solidarizem” (visto a falsidade absurda inerente a um “fica bem”)? Foi aquilo que nunca entendi sobre as selfies cotidianamente postadas: é para ler “que linda!” todo dia?
Talvez, é claro, eu que ainda não entendi alguma coisa. Ou quem sabe nos faltem pensadores para refletir sobre este novíssimo mundo. Eu realmente sinto falta de pensadores sobre o nosso tempo. Diante deste problema da autovitimização midiática e da performance on line eu lembrei do Benjamin, o Walter. Porque na mesma semana assisti a um filme no qual o protagonista era um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial vítima daquilo que foi identificado à época como uma dificuldade narrativa. Para resumir, os horrores da guerra eram tais que quem voltava não conseguia narrá-los, verbalizá-los, e tornaram-se pessoas de fato traumatizadas.
Quando eu vejo as pessoas correrem publicar seus eventos traumáticos e suas perdas eu concluo que não existem mais nem o trauma nem o luto. Porque são os dois momentos humanos mais íntimos que existem. Quando você passa por uma situação de violência, você tem toda uma experiência traumática nova, sua consciência e pensamentos precisam aprender a lidar com aquilo, o sistema nervoso desenvolve escapes e descontroles. Existe um tempo ali, e este tempo não é mais respeitado. Quando alguém próximo falece a primeira coisa que a pessoa faz é escrever uma publicação enorme e colocar dúzias de fotos. E a dor real da perda? Por que querer a comiseração alheia? E o silêncio inerente ao luto? Vejo muita foto de perfil em preto e branco escrito “luto” de pessoas que não fazem a menor idéia do que isso significa. Por que relatar as dores em tempo real?
É óbvio que cada um trata dos seus traumas e dores como bem entender. Mas, relatá-las em tempo real on line não é uma forma de lidar com elas. Isso é evidente. Acima de tentar narrá-las, que era o que faltava aos soldados da Primeira Guerra, vivemos nessa necessidade de exposição. Vivemos achando, agora, que precisamos contar a todos sobre o que nos acontece. Antes, ao menos, eram só as alegrias e a vida maravilhosa que (nem todos) tínhamos. Aos poucos isso se estendeu a tudo – até as maiores desgraças. Se esta constatação não te incomoda, sugiro parar a leitura.
Tudo começou com não vivenciarmos mais as nossas experiências. Lembram da piada antiga sobre os japoneses? Que eles viajavam e tiravam fotos, que só “viam” os lugares quando as revelavam ao voltar pra casa? Então, nós não casamos mais, não parimos mais, não cantamos mais parabéns, nem pegamos o canudo ou viajamos de férias. Nós só gravamos stories, ou publicamos posts e fotos. “Compartilhar” é a palavra maldita da década. Já paramos pra pensar por que compartilhamos todos os nossos momentos on line? Sim, porque há o outro lado, compartilhar a vida com as pessoas reais a nossa volta, aqueles a quem amamos e tal.
Por que todas as nossas ações precisam (tornou-se um caso de necessidade) ser publicadas? Daí foi um pulo para também publicarmos nossos desesperos, eventos traumáticos, acidentes, problemas e dores. Eu cairia no clichê dizer que não vivemos mais. O ponto não é este. A questão é não termos o nosso tempo para experenciar tudo o que acontece conosco. E assim, talvez, perder o que os fatos podem nos dizer no mais íntimo.
Gosta de praia? Foi à praia no feriadão? Senta lá com o pé na areia e aproveita o solzão, o mar lindo. Não fará diferença para ninguém saber onde você está (só para ladrões, por exemplo). Teu filho nasceu? Aproveita, dizem que é uma experiência única na vida. Preserva a imagem dele de fotos que caem no mundo obscuro da internet (nem todos teus “amigos” são amigos) e, sério, o que interessa aos outros saber com quantos quilos ele veio ao mundo?
Teu pai morreu? É duro. Fica ao lado da tua mãe, irmãos, aproveita os últimos minutos do velório (que são cada vez mais breves) para pensar nele. Esquece de rede social, pede pra alguém pegar a agenda do telefone e avisar aos mais próximos. Era assim que a gente fazia no século passado, sabia? Teu companheiro fiel morreu depois de mais de dez anos ao teu lado? Ô, dói. Chora em silêncio no quarto. Tudo isso leva tempo e silêncio pra gente aprender a conviver. Textão nenhum vai resolver – nem ajudar. Ah, e, claro, ainda não temos certeza que falecidos leem redes sociais. Pode ser inútil escrever para eles por este meio.
Casou? Aproveita a festa. Aproveita a lua de mel (que é a dois, por favor). Ninguém mesmo tem nada com isso. Agora, a gente desconfia das pessoas que não suportam viver a própria vida sem estar o tempo todo a publicar o que faz, sofre, ganha ou perde. E a desconfiança parece-me legítima.
E eu não poderia deixar de acrescentar uma crítica: as pessoas que usam essa autovitimização alheia para se promover. É uma crítica que eu tenho entalada aqui faz um tempo. Sabemos que a internet tornou-se a escada para muitas pessoas alcançarem o “sucesso”, dizem que um espaço mais democrático que dá visibilidade para artistas e afins que, numa outra época, ficariam sempre restritos aos produtores e interesses. Porém, utilizar a dor e o sofrimento do outro para ganhar cliques e compartilhamentos é demonstração de falta de caráter.
É complicado falar em exemplos porque alguns casos foram próximos. É como usar a preocupação dos pais com um jogo de adolescentes para promover o seu trabalho com campanha contra o bullying nas escolas. Ou usar casos de estupro, seja de funcionária da Globo, de anônimas no ônibus ou da tal escritora para promover a sua música que fala sobre a condição de ser mulher. Mas é geral, muitos perfis engraçadinhos e tal se utilizam dos “casos do momento” para autopromoção, nem aí para a situação trágica ou para a dor alheia.
A internet não veio com manual de instrução, eu sei. Por isso que na última década surgiram novos crimes e novas leis para tentar pôr ordem nesse território vasto e ainda nebuloso. O nosso comportamento deveria ser analisado minuciosamente – senão pelos pensadores contemporâneos que nos faltam, por nós mesmos. Porque parece-me que nem todos os casos são de pessoas carentes de atenção. O problema, como eu sempre digo, não é a coisa/objeto/meio, mas o uso que fazemos deles.
Teu traçado mínimo
à flor da pele
em engastes dourados
no meu coração
Em Ilha te fazes
em ilhas me desato
carrego teus caminhos
em memórias ilustres
do que percorri
insensatas flores
desabrochavam em ti
Só e nós nos encontramos
no silêncio dos morros
e nas cores do pôr do sol
nas noites frias
e no vento à beira-mar
Cresci aos teus pés
e em ti menina me sinto
foi assim possível
despedir-me e partir
Os amores eternos
não nos aprisionam o medo
O dia vai escurecendo e o vento sublinha as tentações da preguiça. Já vivemos tanto, já trabalhamos tanto. A vida, por vezes, assemelha-se à árvore desfolhada pelo inverno que vejo todos os dias pela janela. Sem sintomas de nenhuma patologia grave, queremos apenas o aconchego. Ou um chamego no aconchego. Mas dentre horários e agendas não há previsão para imprevistos do tipo: agora me cairia bem jogar-me no sofá, comer biscoitos, rir e conversar. Certeza que todo resto renderia brilhantemente depois dessas interrupções, mas ninguém confiaria.
É que nos preveem máquinas a trabalhar feito formiguinhas impulsionando a roda gigante da economia. Não nos enxergam nas nossas fraquezas e pele e osso que envelhecem e sustentam uma cabeça pesada e um coração incansável. Nos preveem rendimentos e sustentos, obrigações e responsabilidades. Nos preveem números e horários. Dizem, já faz tempo, que assim é melhor para todos e a melhor forma encontrada para manter o mundo de pé. Enquanto nós já não aguentamos as dores nas costas.
A legitimidade da preguiça até pelas religiões foi contestada. Por deuses e pelos homens a preguiça é condenada. Pobre preguiça. A única coisa que ela quer é não fazer nada. É tão de boa que nem a revoltar-se ela se digna. Não é o abuso, o excesso, a vagabundice. É só a preguiça, a rebeldia passageira da rotina, a noite mal dormida, o cansaço fora de dia. É querer o abraço quente na noite fria, o almoço demorado, a caminhada em tardes de sol. Não é sempre que essas vontades se dão aos finais de semana, no dia de folga ou quando já batemos o cartão de saída.
Tem dias que é só assim, mesmo. A preguiça, esse sentimento que nos dá liberdade de ser quem somos quando queremos. A preguiça é poder. A preguiça é genuinamente humana (e felina, e canina…) porque nos percebe não-máquinas, não-instrumentos. A preguiça legitima nossas personalidades e nos dá o tempo que precisamos – como o olhar que dei pela janela antes das primeiras destas linhas. Aos nossos corpos não existe a necessidade de exauri-lo em busca de riquezas para os outros.
De todos os sentimentos, a preguiça é a que mais precisa ser restituída ao seu devido lugar. O do sofá, é claro.
Tem quem dirá que só falamos disso, sem perceber que a questão é que ainda precisamos falar disso. Eu não tenho mais conseguido assistir a um programa qualquer de TV sem me sentir mal com algumas observações. Não tenho conseguido olhar uma rede social qualquer sem me deter em determinadas notícias.
Ontem foi um ex-companheiro que agrediu uma moça de 19 anos e uma senhora de 59 porque não aceitou o fim do relacionamento. E foi a moça do reality show, que na final o marido ficou criticando-a (ajuda muito) e desmerecendo a forma como ela conduzia as coisas – com calma, equilibrada e muito bem planejada (foi a campeã, inclusive, sem a “ajuda” dele). Um marido que vai na TV mostrar que não conhece a própria esposa e ainda querendo mandar nela – como se ela não tivesse chegado lá (à final) sozinha, por mérito próprio.
Todo o dia é assim. Semana passada teve uma cena da novela da noite, o rapaz, mocinho da história, estava preso injustamente e ao receber a visita da mocinha, ex dele, deu murros contra a parede, gritava e chegava ameaçador bem perto dela – o famoso “se você não fosse mulher…”. Uma cena qualquer de novela, dessas que entram todos os dias nas nossas casas. Não era uma cena engajada que denunciava a violência psicológica que há na agressão verbal e ameaça física. Era uma cena normal, a mocinha chorava, ele fazia o papel de machão a socar a parede (como queria socá-la, não é implícito, sabemos) e ainda permeava a situação o comentário de que a mocinha, na verdade, é má, não presta, não é boa coisa. Porque sabemos que se a mulher não presta, ela merece violência. Aliás, tornou-se argumento até num último caso aí de agressão aluno-professor. Violência, se esquecemos, jamais se justifica. Jamais.
Eu acredito que tomei consciência, há algum tempo, de como é amplo o espectro de violência que nós mulheres sofremos. Mas o exercício cotidiano de identificá-los o tempo todo a nossa volta é mais recente. Porque a gente tenta não ver. A gente não quer ver, porque sofre junto. Eu vivo numa cidade onde, em oito meses, 90 mulheres foram estupradas. 90. Se esse número não é significativo ou assustador, então você só pode ser homem – e dos piores.
Eu via manchetes sobre violência dita doméstica. Eu comecei a acompanhar como isso crescia nos meios de comunicação, como casos com famosas ajudavam a dar visibilidade. Hoje eu leio cada nota que sai, para avaliar o tom do texto e da interpretação dada (porque há sérios problemas com isso, infelizmente), para saber o que está acontecendo ao meu lado, para dar um apoio velado a quem tem sofrido e tem tido a coragem de denunciar.
E, assim, tornou-me repetitiva. Sim, repetitiva. Porque é um processo, um processo pelo qual todos deveríamos passar. Devemos entender o que acontece ao redor. Devemos desenvolver essa capacidade de prestar solidariedade e aprender a nos posicionar. Sobretudo, aprender. Esse “excesso” de notícias não deve, porém, banalizar a mancha da violência contra a mulher. Mas, pelos últimos exemplos como os que eu citei, é fácil perceber que está entranhado nas nossas relações, está tão imersa a submissão da mulher, a violência que não se resume a socos e facadas, que é preciso muitos dedos apontados para as falhas que nossas atitudes denunciam todos os dias.
E, por isso, serei repetitiva. Por isso, voltarei ao assunto inúmeras vezes. Até, quem sabe, uma divertida e descompromissada sentada no sofá não seja mais um incômodo contato com o que há de pior naquilo que reproduzimos na vida real e na ficção, todos os dias. Porque ainda precisamos falar disso. Porque nossas meninas e moças nasceram nesse mundo de merda que oferecemos a elas, e depende de nós tentar mudá-lo e, também, fazê-las perceber que as coisas não devem ser “como são”.
La antología de nuestros sueños
estuvo mirando estos días
fuéramos tan celosos
y nos traicionamos
Hubiera sido una estrella
mi deseo de ser feliz
contigo y brillaría
por todas las noches
Si tú ahogase mis miedos
en la lluvia fría del otoño
habríamos llegado a la primavera
Pero nos quedamos
infieles al despertar
de todo lo amor que teníamos
guardados para mañana
nos quedamos apáticos
al salir por las calles
llenas de dudas y tesoros
La vía tenia espinos dulces
donde me ha sangrado
el corazón y el pecho
he caminado sobre las manos
por dar-te esperanzas
de nuevos días y abrazos
piensa, no te quito las noches
piensa, no te quito la salida
piensa, no te quito la sonrisa
Habrá siempre la ventana abierta
y la cama caliente
y un té sobre la mesa
y yo a mirar la puerta
por las noches en el desierto
O ano confirmava: íamos em frente, no tempo apenas. Não queremos acreditar no que vemos, nessas ruas tomadas por idéias do passado. Negamos – o pior dos pecados de uma humanidade – que exista o nojo encalacrado pela cor da pele e pela religião do outro. E diziam que evoluímos, escreveram tratados, provaram-nos por a + b que descendíamos desse e chegamos a esta perfeição, a esta máquina que funciona tão bem. E criamos um mundo todo novo e que avança sem nos darmos conta, e este mundo cura doenças, desvenda DNA, constrói arranha-céus e trens-bala. Nossa máquina, quem sabe, não falha. Mas a mente, há um “mas”, ela jamais poderá ser explicada.
É 2017, eu garanto. Nos outros calendários, nem sei, é muito mais. E nem todo esse tempo nos livrou de querer a morte dos nossos iguais. Aliás, eis a questão: não queremos ser iguais. Não admitimos que somos iguais. Somos estúpidos, é certo. Nossa estupidez humana nos une. Vamos às ruas unidos pela ignorância. Apoiamos a estupidez de negar – a negação, a negação… – que fizemos (e fazemos) mal ao mundo onde vivemos. Talvez ainda mais difícil de acreditar, negar que este mundo está padecendo da nossa vida abusiva e do mal que nossas criações geraram. Negam, negam com a cara mais inútil da vida. Negam que o gelo se parte, que as Estações estão doidas, que o calor esquenta cada vez mais e o frio nos aterroriza. Negam, negam e negam que o lixo produzido entope as artérias do mundo. Negam que usinas e desastres ambientais estão ameaçando o ar que respiramos.
A negação é o último estágio da morte. Logo depois, morreremos. E vivemos esta negação hoje. Negamos, principalmente, que temos um passado árduo e cruel. Negamos que somos responsáveis pelos nossos rastros – negamos nossa humanidade, esta que nos une e que nos culpabiliza sem chance de defesa. Nossos atos são indefensáveis. Nossa culpa coletiva é homérica. Nossos pecados são inegáveis. Temos consciência disso, mas – sempre o “mas” – queremos negar como crianças mimadas que choram porque contrariadas.
Diziam que chegaríamos tão longe, imaginavam carros voadores e tudo. Eu sei. E acabaremos nas mãos da mais ínfima reação animal: matar-nos uns aos outros. Garanto que não será por comida, nem por território, nem pela reprodução da espécie. Será pela estupidez que nos caracteriza tão bem e que, de fato, é o que nos diferencia dos outros animais. Um pato não é estúpido. Nem uma jararaca. Não chegaremos lá, não nos demos esta chance. Preferimos ir às ruas reproduzir nossas estupidezes do passado, preferimos repetir os erros pois somos humanos. E errar é a reação mais humana possível.
Negamos. Negamos que tudo é tão precário. Negamos que esta vida é tão fugidia. Negamos que para ser humano é preciso sensibilidade. Negar as consequências de toda uma humanidade a viver desabridamente por tanto tempo, num espaço finito, é nosso segundo maior erro. O primeiro é negarmos que nossos atos desfazem nossa essência: somos humanos.