Passagem de Volta – o conto

Sentou-se e admitiu em silêncio: estava cansado. Mais uma semana de trabalho naquele ritmo e ele desejaria três meses de férias. Alguma praia tranquila, água transparente, os doloridos pés sem sapatos enterrando os dedos na areia fina. Aí lembrou, a esposa detestava praia. Férias era sinônimo de viajar para a casa dos pais dela no interior. Há sete anos ele não tirava férias, dos dez de casado.

Pediu um café forte e simples e espantou-se com o preço. Além da passagem cara, por ter sido em cima da hora, agora esse assalto no café. Três noites sem dormir para resolver aquele negócio e ainda essa viagem e o irritante atraso no voo. Em algumas horas teria que estar de volta.

Chamada após chamada e nada do voo dele ser anunciado, sequer uma explicação estapafúrdia sobre o atraso. Seu pessimismo sussurrava que o voo seria cancelado. Foi até o balcão apinhado de pessoas indignadas para ser só mais um a reclamar – como se os funcionários já não soubessem que todos ali estavam injuriados, tinham conexão, reuniões, tudo muito importante. Ouviu uma moça da companhia aérea explicar que havia um avião com problemas na pista, o que atrasava todos os outros. Rodou mais um pouco pelo aeroporto, a fome, que seria saciada com o lanche do avião, se fazia sentir. E finalmente chamaram para o embarque.

Foi um rebuliço. Enquanto todos lamentavam o atraso e criticavam a empresa, ele sentou, retirou uns papéis da pasta e começou a fazer anotações. Tão logo deu uma olhada para a cidade vista lá de cima, cochilou. Era uma pena que as viagens de avião encurtassem o trajeto mas não prolongassem o tempo, pois ele dormiu muito bem.

Saiu correndo em direção ao metrô. Tantas vezes estivera ali que agia maquinalmente, era só mais um dia de trabalho com uma infinidade de problemas para resolver. Seguiu a procissão, cartórios, advogados, contadores, registros, documentos e mais documentos. Cinco horas depois deslizou na cadeira de uma lanchonete e pediu o sanduíche de pernil de sempre. Devorou-o enquanto revia os documentos. Só faltava um último registro num cartório imobiliário mais para o centro, perto do hotel. O hotel. Ah, suspirou! Sonhava tirar aquele sapato. Tomou um copo de suco de laranja em um único longo gole, passou o guardanapo nos lábios, pagou e saiu.

O hotel não tinha nada de especial, só era bem localizado. Havia demorado mais do que ele imaginara, pois os trens do metrô estavam em pane. Pegou a chave sem sorrir para a recepcionista, entrou no elevador, escorou-se no espelho da parede interna e subiu.

Abriu a porta do quarto e tirou os sapatos antes mesmo de fechar a porta. Jogou-os para o lado, afrouxou a gravata, tirou toda a roupa e tomou um banho quente. De pijama, sentou na cama com o computador no colo. Precisava ler uns e-mails do escritório para adiantar o trabalho de amanhã e fazer o check-in do voo de volta.

Começou a suar. Não era possível. Estava igual aos seus companheiros de voo, excomungando a companhia aérea e maldizendo “com essa nunca mais”. Tentou, pela milésima vez, fazer o check-in. E nada. Não tinha guardado o comprovante do embarque da ida. E o sistema acusava que ele não tinha embarcado. Revirou sua caixa de entrada do e-mail e lá estava: seu bilhete fora cancelado porque não houve embarque no voo determinado, portanto a volta também não existia. Como voltar de um lugar para onde ele não tinha ido?

Levantou, deu uma dúzia de voltas pelo quarto coçando a cabeça. Tentava encarar a situação com alguma lógica. A companhia não havia registrado seu embarque, o bilhete não existia mais para prová-lo, somente, talvez, as câmeras do aeroporto o vissem entrando no finger. Mas as câmeras do aeroporto do destino talvez também o tivessem registrado. No mais, era uma pessoa desaparecida. E isso cresceu mais nos seus pensamentos do que o fato de que não tinha passagem para voltar para casa – teria que travar uma briga estúpida com o sistema e os funcionários da companhia aérea, pagar taxas e mais taxas ou simplesmente pagar (mais) um absurdo por uma passagem de volta.

Ele sumira, aos olhos do sistema. Se ele não desse as caras amanhã em casa nem no escritório, ele estaria desaparecido. E ao investigar, a polícia se depararia com o registro do sistema: ele não embarcou, senhor. Se ele não havia embarcado, não havia chegado ao destino. Ou seja, teria desaparecido no aeroporto de origem – na cidade onde morava. E as investigações nem chegariam até a cidade onde ele estava. Aliás, nem a ficha do hotel ele tinha preenchido ainda, pois estava muito cansado e pediu para fazer isso depois – e os funcionários do hotel eram muito relapsos e sempre mudavam. Não seria fácil identificá-lo. Ele poderia sumir sem nem pagar, jamais saberiam que ele estivera lá. Isso se a investigação chegasse até o hotel.

Pensou na esposa. Ficaria em choque. Pensaria em assalto, que ele teria reagido e fora assassinado – ela sempre se preocupara com isso. Dias depois ela já teria certeza que ele havia se envolvido em algum esquema grande de corrupção – ela desconfiava dele, sempre, porque não via que o dinheiro vinha dos intermináveis dias de trabalho e não de negócios escusos. Ela o acusaria para a mãe dele. E talvez as duas acabassem concordando que fora, afinal, assassinado por ter se envolvido com a mulher de alguém.

Uma euforia tomou conta dele. Ele não existia mais. O fardo da existência havia sido retirado das suas costas. Sentia vontade de beijar a companhia aérea, abraçar seus aviões, seus pilotos, suas funcionárias simpáticas e prestativas. Ele não era mais ele mesmo – poderia, então, ser quem ele quisesse. Poderia inventar-se a si mesmo. Mas queria aproveitar este momento de não ser, absolutamente, ninguém. Não. Melhor. Ele não era “ninguém”. Ele simplesmente não existia. Mas, para isso, precisava cuidar dos vestígios.

Decidiu destruir o computador e sair do hotel na calada da noite. Arrumou a mochila, colocou a roupa. Estava pronto. Pegou o elevador e ninguém diria que aquele homem alto, peito inflado, sorriso escancarado era o mesmo que aquela coisa murcha que havia subido, horas antes, apoiando-se em tudo para não cair no chão. Desceu do elevador e aguardou atrás do pilar até ter certeza que o porteiro noturno dormia com seu fone de ouvido. Saiu em silêncio e ganhou a rua como se tivesse matado um leão. Era um ato heroico.

Já tinha tudo planejado. Possuía uma conta bancária que ninguém conhecia. Era onde ele guardava o dinheiro do sonho de construir um barco quando se aposentasse. Aquele homem que entrara no hotel estava anos-luz de se aposentar, mas com o dinheiro da conta já era possível construir uns dez barcos. Agora, aquele homem que caminhava lépido não tinha trabalho do qual se aposentar. Levaria alguns dias para retirar todo o dinheiro da conta, mas o faria. Ele nunca fora adepto de cartões, sempre usara dinheiro vivo – mais um dado que impediria que ele fosse rastreado e que faria sua esposa insistir na tese do assalto.

Tinha tudo pela frente: a vida, a madrugada, a escolher um destino. Pensou na praia. Em menos de duas horas chegaria até a mais próxima. Pegou um táxi e falou bem alto, com todas as letras “Vamos à praia, meu senhor”. O motorista temia mais um louco na madrugada. Combinaram o pagamento antes e seguiram.

Ao chegar, tirou os sapatos e as meias e deixou-os junto à mochila na calçada vazia, arrebentou a carcaça do computador e jogou-o numa lixeira. Correu dando saltos desajeitados até enfiar com gosto os pés na água gelada. Imaginou-se dono de um bar em qualquer praia quente do país. Viveria entregue à delícia de ouvir, dia e noite, as ondas quebrando na praia. A decisão estava tomada. Não almejava nada mais. Não queria ser ninguém. Inventaria algum nome fora de suspeita, nunca mais usaria sapatos, nem gravatas, nem no casamento da filha.

Começou a chorar. A filha, ela adoraria estar ali aos seus pés brincando na areia, enchendo o balde com a água do mar. Teria que saber viver sem ela, como, aliás, vivia todos os dias, assoberbado de trabalho – daria no mesmo. Mas não daria o infalível beijo de boa noite. Não contaria histórias mirabolantes sobre animais fantásticos nas noites de sábado insinuando-se para que ela fizesse o convite: pai, vamos dormir no sofá? Era pouco. Muito pouco. E já sentia que este pouco lhe faria muita falta.

Viu o sol nascer. E guardaria para todo o sempre aquele momento. Dele lembraria quando estivesse internado, aos sessenta e quatro anos, sem aposentar-se, trabalhando dezoito horas por dia, com a poupança para o barco com dinheiro para construir uma frota, depois de um infarto fulminante que levaria sua vida após dez agonizantes horas entubado e sobrevivendo por aparelhos.

Caminhou descalço pela orla até encontrar um táxi. Era o mesmo que o trouxera. Seguiram em silêncio até o aeroporto da outra cidade. Ele pagou em dinheiro, o que tinha retirado pra viagem, pois nem havia tocado na poupança do barco. Entrou no aeroporto com seu ar-condicionado gelado. Arcado, parecia ter dez centímetros a menos. Olheiras. A mochila numa mão, os sapatos na outra. Aproximou-se do balcão da companhia aérea, colocou os sapatos no tampo, tirou a carteira. “Oi, eu preciso embarcar. Mas eu não existo pra vocês. Vê aí o que a senhorita pode fazer” e a atendente, tão acostumada às bizarrices dos passageiros aéreos, deu um passo temeroso para trás. “S i i m, senhor”.

Ele não existia, é claro, porque ele não embarcara, o senhor pode ver aqui, temos a lista de passageiros, se o senhor conseguisse provar a sua existência, quer dizer, o seu embarque, tudo estaria resolvido. Tinham um voo para dali uma hora, lotado, é claro, o senhor entende. Não conseguiriam resolver o não-embarque, então, veja, o senhor pode solicitar o estorno posterior desta passagem. E agora só dali seis horas, um voo não direto, veja bem, com escala de duas horas numa outra cidade mais ao norte. Resolveria o seu problema, não é mesmo? O valor era alto, é claro, mas o senhor entende, restam poucos lugares. Mas teria a certeza de embarcar hoje, com menos contratempos, não é mesmo?

Ele ouvia. Só movimentava a cabeça. Tirou o dinheiro do bolso, jogou no balcão. Seis horas naquele aeroporto, mais uma hora e meia de trajeto, mais duas horas de conexão, mais uma hora de trajeto. E aí estaria de volta. Com um último suspiro de quem não existia, tomou a decisão que enfrentaria o que fosse, não importava, desde que sem os sapatos e apreciando a sensação da areia ainda entre os dedos. Ninguém o obrigaria a viajar com sapatos.

Virou as costas, caminhou a esmo. Sentou-se na cadeira e pediu um café. O dobro do preço do café da ida. Pagou e tomou-o bem devagar.

(Conto original que foi adaptado para roteiro e foi produzido, agora disponível online em: https://youtu.be/HDow-fMA5xA)

Garrafas

Ela sobrevivia naquela ilha perdida há anos. Comida e água a natureza sempre nos oferece. De resto, passava seus dias a escreer cartas – de amor. Escrevia todos os dias, exceto aos domingos que era dia de descanso. Vivia naquele lado da ilha onde havia praia, uma bela praia de água mansa e clara, sol e areia fofa. Do leste para o sul da ilha um paredão de pedra a afastava.

Passava os dias sobre um velho galho de árvore trazido pela tempestade, ou sobre as pedras do final da praia com seu maço de folhas a escrever suas cartas. A cada uma que finalizava, dava-lhe seu sorriso, seguia até a cabana onde vivia e a enfiava dentro de uma garrafa de vidro bem lacrada. Assim, ao final do dia ela voltava à praia e na vazante as despejava uma a uma. Quantas por dia? Variava conforme seu coração se exauria.

(De onde as garrafas, canetas e papéis? Nem eu saberia dizer.)

Inventava personagens, criava situações, imaginava encontros, lembranças e memórias – e tudo escrevia. Uma carta mais bela que a outra (posso lhes garantir). Em todas o amor vencia. E é o que dizem, mas nem sempre é o que a gente vê. Ela recheava cada uma com todo o amor que há no mundo. E, ao entregá-las ao mar, seu fiel amigo, fazia uma breve prece silenciosa.

O destino de cada uma ela jamais saberia. Se despedia com o desprendimento do afeto doce de quem muito viveu. Ocupava seus dias a calejar os dedos e o coração entre tantas palavras de amores inventados. Sentia, porém, que sua missão nunca se extinguiria. E tão logo ela não mais pudesse estar ali para escrevê-las, alguém a substituiria.

Naquela ilha fazia sol todos os dias, a chuva, quando vinha, durava pouco. Era possível viver em conforto e alegria. Tinha, enfim, todas essas coisas indispensáveis. Da solidão não vou lhes falar, quem tem amor não vislumbra sua sombra. E a deixamos ali, na companhia do sol que já vai alto no límpido céu, embalada pelo marulhar da água azulzinha e atenta aos gritos da natureza que a cerca.

Às suas costas, ao sul da ilha, as pedras e o enorme paredão vivem sob limo, umidade e escuridão. Por ali não há viv’alma, nem os animais marinhos a acham atraente. O mar quando obrigado a achegar-se, vem violento, rasteiro e inclemente. Estoura-se contra as pedras, faz ganir o silêncio daquela sepultura. Entre suas pedras rancorosas de abandono jazem cada uma das garrafas que são expedidas por ela, lá do outro lado da ilha. Se olharmos com atenção veremos que todas mesmo, sem exceção, encontram-se emaranhadas entre algas e pedras. Enquanto isso, o sol se põe e nas garrafas o amor adormece.

Histórias de Natal–A Neve

A menina de cachos castanhos, sentada à janela aberta, com os cotovelos apoiados no beiral admirava o que via lá fora. Seu cachorro, sobre as duas patas traseiras, também olhava arregalado para a vasta branquidão. A mãe passava pela porta do quarto a trovejar “fecha esse vidro, menina, vai ficar doente nesse frio! Que mundo louco, em pleno dezembro! O mundo ficou louco! O mundo ficou louco!” e seguia atarantada pela casa, sem saber ao certo o que fazer – como muitas e muitas pessoas pelo globo afora.

Nevava. E a menina deslumbrada observava aquela maravilha em floquinhos a cair do céu e o tapete congelante e fofo que se espalhava pelo pequeno jardim e pela rua. Crianças sem roupas apropriadas corriam sem jeito, mães ficavam pelos cantos, espantadas e segurando sombrinhas. Nunca nevara por ali – como numa grande parte do mundo. As TVs tagarelavam aflitas em busca de explicações, especialistas, alguém que pudesse entender o que acontecia no mundo. Era dezembro, Verão no hemisfério Sul, previsão de calor; que nevasse no hemisfério Norte era esperado, mas estes assistiam atônitos à neve que se apoderava do mundo todo.

Naquele dia nevava em absolutamente todos os lugares do mundo. Alguns citavam que era o verdadeiro white Christmas all over the world, outros prediziam alguma tormenta de Deus ou a volta do Seu filho, muitos correram às igrejas e templos, poucos puseram-se em oração, milhões registravam o momento temendo que fosse efêmero – e tornando-o efêmero na sua experiência apenas sentida em fotografias e vídeos. E a menina suspirou e sorriu ao ver o céu despejar mais flocos de uma branquidão calmante e peculiar – sem dúvida peculiar naquela terra onde raramente fazia menos de vinte graus.

Cogitava-se algum erro brusco no cálculo dos metereologistas ou uma catástrofe não testemunhada pelos satélites ou, temia-se ainda mais, era, finalmente, a resposta da natureza ao modo de vida abusado e dispendioso de humanos que só exploravam e se reuniam em tentativas de absorver o impacto de uma população gigante num mundo finito. Ou, na verdade, não se sabia de nada. A menina ouvia a TV da sala ao lado na pequena casa, muito se falava e se mostrava, nada se sabia. Seu cachorro vidrado no branco que não motivava a sair e, vez ou outra, a olhava de soslaio como se de tudo soubesse. A menina sorria e seus olhos brilhavam.

Equipes de socorro e de prevenção de desastres foram chamadas às pressas no feriado do dia santo do nascimento do menino, largaram suas famílias, suas mesas fartas, seus presentes embrulhados. Políticos também, mas não compareceram – não parecia um problema que lhes dissesse respeito, afinal era algum capricho da natureza. Fazia-se cálculos e a preocupação aumentava, para onde escoaria toda aquela água depois de degelada?, as pessoas de países pobres do hemisfério Sul não estavam preparadas para um frio extremo, pois são de pasíses quentes, quantas vidas se perderiam?, e o mundo, todo branquinho, parecia – para alguns de pouca fé – ter chegado ao fim. A menina, porém, via o início naquela neve manchada de barro onde agoa alguns meninos pisoteavam tentando fazer um boneco.

A neve caía em paz cobrindo todo o mundo, misturava-se à areia das praias, espalhava-se sobre telhado e ruas, repousava sobre árvores que desconhecia. Florestas foram tomadas, cidades inteiras ficaram em silêncio sob seu manto, e ela sossegadamente não parava de cair naquela véspera e durante todo o dia seguinte. E a menina ali ficou, cotovelos doloridos, a observar a neve da sua janela. Ela sorria. Ainda persistia a dúvida e muita previsão foi feita. Nada, de fato, ainda se sabia.

A menina vivia numa casinha na periferia. Pai pedreiro e mãe costureira – que já se aventurava a arrumar um casaquinho para a filha, colocando um forro extra para agasalhá-la melhor naqueles dias tenebrosos. Com sorte, a menina terminaria a escola. Com muita sorte a menina conseguiria um emprego dali muitos anos. Sem sorte, sua vida seguiria… A menina suspirou pela milésima vez a contemplar a beleza que via. O cachorro, enrodilhado aos seus pés, gania baixinho como se tivesse pesadelos. A mãe dormia agarrada ao terço e com lágrimas secas nos olhos – o frio era caro, aquecer a casa, a menina, os bichos, muita roupa molhada e tudo isso lhe custava mais ainda a pregar os olhos.

O pai levantou-se da TV e passou na porta do quarto da menina, que estava na janela desde o primeiro floco de neve que caíra na véspera. A menina era sonhadora, um tanto avoada, o pai não quis atrapalhar a contemplação e foi deitar. Quem sabe ela estivesse sem sono mesmo. Preocupava-o o trabalho, tudo parado devido àquela neve suspeita e odiosa, sem dinheiro reserva, sem aquecimento na casa. Mas ele dormiria.

A menina suspirou mais uma vez e ao ouvir todos dormindo, a janela aberta ainda, sussurrou um “muito obrigada”. Apoiou o queixinho nas duas mãos e viu que, quanto mais o ponteiro se aproximava da meia-noite, mais a neve ia escasseando. Sorriu e deu mais uma olhada para o papel que trazia dentro da manga do casaco, a cartinha para o Papai Noel, que ela deixara naquele mesmo parapeito na noite anterior. Sorriu ao ler o recado “assim seja!” e a assinatura do velhinho das barbas tão brancas quanto a neve. Sorriu ao ver os montes brancos no jardim. Leu, mais uma vez, seus garranchos que ingenuamente explicavam ao Papai Noel que ela era pobre, como seus pais, e assim seria sempre, por isso pedia para ver a neve do Natal de que tanto ela via nas toalhas de decoração e nos filmes na TV.

A TV estava quieta. A menina esticou os bracinhos, estralou os dedos, viu a branquidão começar a sumir do entorno, feito mágica, e o céu deixar de despejar seus flocos. Era meia-noite. Ficou ali uns minutos ainda, sorrindo e agarrada à sua cartinha. Hoje ela dormiria feliz.

Histórias de Natal – A ceia

A mesa estava finamente decorada. Era o primeiro ano, em décadas, que não seria dona Lourdes a fazer a ceia do Natal. Ela preparava cada detalhe, durante uma semana, desde a louça que seria usada, os guardanapos decorados, até o peruzão recheado e assado durante horas para satisfazer todos os familiares, entre filhos, filhas, netos, genros, noras e agora até bisneto. A família era grande e, por isso, palpite não faltava. Mas dona Lourdes mantivera o poder em suas mãos: a ceia era sempre na casa dela, feita por ela.

Naquele ano ela esquecera o fogão ligado duas vezes, à noite. Também batera o carro pela primeira vez, porque não viu um pilar na garagem do prédio da filha mais velha. Aos burburinhos os parentes decretaram: ela estava velha. Um Alzheimer, talvez, em fase inicial. “Mãe, você já não pode fazer isso”, “Vó, não quero que a senhora fique sozinha” e todas aquelas preocupações. Desde a viuvez, há mais de vinte anos, ela tomara as rédeas da própria vida. E agora a consideravam gagá. Imprestável, inútil, incapaz.

Por isso, naquele dia 24 ela havia orientado a arrumação da mesa – tinham medo até que ela quebrasse a porcelana italiana, que algumas noras cobiçavam – e ficara sentada na sua poltrona. Fizera apenas duas exigências: a ceia teria que ser na sua casa e feita por alguém da família. Como ninguém tinha tempo, a nora, esposa do filho mais velho, se dispôs. Dona Lourdes, sentada ali, observava o vai e vem. Da cozinha vinha um cheiro indefinido. A nora estava com olheiras e gritava com os filhos.

– Oi, vó! Já está aí? – era sua neta mais nova, acabara de chegar de férias, pois estudava em outra cidade.

– Oi, minha querida! Estou só de olho. – cochichou a avó com um sorriso matreiro.

– Nem vou querer jantar, viu. Se não é a sua comida, nem quero! – disse a neta ao pé do ouvido da avó.

– Não se preocupe. Faremos jejum! – e dona Lourdes caiu numa gargalhada.

Todos sabiam do apreço da avó pela neta mais nova. Eram opostos, porém. Dona Lourdes fora criada como antigamente, o trabalho da mulher era cuidar da casa, do marido, dos filhos, aprendera a bordar, costurar, cozinhar, limpar e a artrose espalhada pelo corpo testemunhava quantas vezes ficara de joelhos a esfregar o chão – da loja de relógios do marido, inclusive – e quanta roupa lavara no tanque para que os filhos fossem impecáveis à escola. Laura tinha nem vinte anos, dez tatuagens, uma lista de ex-namorados que nem ela sabia de cor, o cabelo roxo, era feminista de ir às ruas, não sabia fritar um ovo e, somente nisso deixava sua avó horrorizada, usava roupas rasgadas. Nem preciso mencionar que Laura era o patinho feio, a ovelha negra, e o pai se alegrou quando ela decidiu estudar História na capital – ele não sabia conviver com a filha.

A família foi chegando, a nora se estressando, os presentes engordavam o chão da sala aos pés da árvore de Natal. A noite prometia. E dona Lourdes, impaciente, sentada na poltrona. Nunca ficara sem fazer nada na vida.

Anoiteceu. Risadas e presentes.

Foi quando o neto do meio, entre tantas netas, veio do banheiro.

– Vó, tá um cheiro ruim lá na cozinha. A vó não quer dar uma olhada?

Dona Lourdes, depois de abrir uns pacotes com toalhas e meias, levantou-se prontamente. Ela era necessária, então. Correu a passos firmes para a cozinha. O desastre era completo. O peru tivera perda total. Torrado por fora e cru por dentro. O risoto grudara na panela. A salada estava puro sal. A farofa queimara. A nora, que estivera cochilando sobre os braços na mesa da sala, ergueu a cabeça e chorou. “Tanto trabalho, meu Deus, mas, também, ninguém pra me ajudar…” e as lamúrias não foram poucas.

– Vou anunciar que não teremos jantar. – disse dona Lourdes seriamente.

– Mas, mãe, como não teremos jantar? As crianças estão mortas de fome. Eu também, claro. Como que alguém não consegue assar um peru?! – o filho demonstrava toda sua compreensão.

– Alguém? Por que, você consegue, Maurício? – a mãe repreendeu-o enquanto se dirigia à sala.

– Vó, espera aí. Te digo, eu resolvo, tá? – era Laura – Deixa comigo, nem fala nada com ninguém, eu já volto. – Amore, vem cá. – o namorado da vez, que ninguém ainda havia decorado o nome, veio e ambos saíram.

Dona Lourdes olhou e olhou. Não sabia como pegar aquilo direito. O silêncio de todos diante da mesa arruamda fora quebrado pela algazarra das crianças, contentes diante de tanta batata frita e hamburguer. Laura fizera as honras e dava mordidas satisfeitas no seu lanche.

– Bisa, tá delícia! – era o bisneto mais novo, dois aninhos.

Orgulhosa pelos créditos, porém lambuzada de ketchup e maionese e um hamburguer fugindo pelo canto do pão, dona Lourdes arrematou:

– Então é isso que vocês comem quando não estão na minha casa, é? – e sorriu para Laura.

Histórias de Natal – O Diabo

Só Diabo mesmo, diminutivo de “pobre diabo”, como ficou conhecido pelas redondezas. Vivia no barranco atrás de uma casa grande, em um barraquinho feito de lona e restos de madeira, do tamanho de uma casa de bonecas, mas sem a beleza, debaixo de um frondoso flamboyant. Quando chovia, vocês imaginem, o chão de terra era uma cachoeira. Os pezinhos saltitavam de pedra em pedra evitando o lodaçal. Eram pezinhos e pouco cresciam tão magrinho o menino.

Fazia de tudo um pouco pra lá e pra cá, moedas lhe davam ainda menos – por vezes um pão velho ou uma carne apodrecida – como se a Deus louvassem e suas almas salvassem. A pele escura demais para ser branco e clara demais para ser negro, todos lhe evitavam, ninguém o considerava igual. A casa grande era barulhenta e distante com seus filhos engomadinhos e aparelhos de liquidificador na cozinha. Ele nem luz tinha e se aquietava ao apagar a vela antes de dormir em paz.

Corria o boato de que a casa grande uma benção lhe fazia, pois desde que ele surgira cederam o barraquinho para morar e quando ainda muito pequeno leite lhe davam. O pastor assentia, a vizinhança achava bonito o gesto. E assim todos viviam.

Por aquelas terras, numa época muito chovia. Frio também fazia. O Diabo vivia com a roupa do corpo, o que sobrava das crianças que cresciam. Quase não falava e feliz muito sorria. Se virava com as moedas que ajuntava e com os peixes que pescava. Desde cedo aprendera a pescar: não era só por necessidade, também pescava porque aquilo lhe alegrava.

O Diabo a ninguém importava. O dono da venda bufava e de olho de rabo controlava os gestos do Diabo quando por ali ele passava a comprar algum vívere. As velhinhas o nariz trancavam quando por ele passavam. Os homens todos muito mal ficavam com sua presença – apesar de sempre lhe chamarem para pequenos serviços – a observar disfarçados um traço do perfil, o gesto, o jeito de caminhar e até o olhar límpido. O medo de reconhecer-se assombrava a todos. Assombraria-os para sempre.

Naquele dia o céu muita chuva prometia. As casas ressoavam os cânticos do nascimento de um outro menino, aquele que, dizem, à humanidade salvaria. Muita fartura se via nas mesas dos abastados donos de perus e galinhas e bois. Uma fartura menos farta nas casas menos grandes dos plantadores de arroz e milho e trigo. Até nas simples casas dos cultivadores de couve e morangos e bananas muito havia de comer e calor humano e presentes dados e recebidos. A tudo isso de longe o Diabo ouvia.

Sentadinho na sua banqueta à beira do rio o Diabo pescava. Parecia que até os peixes festejavam o nascimento e nada queriam de ser a sua simbólica ceia. Paciente e esperançoso, o Diabo atento vigiava a linha. A fome lhe chamava mas com essa ele bem demais se dava. As nuvens ribombaram, os raios trovejaram e lá vinha um carro lotado de alguns que de uma festa voltavam. O Diabo nada pescara e nem tempo teve de fugir dos pingos grossos. Ajuntava seus apetrechos já encharcado quando tudo se deu.

O carro rápido demais vinha. O motorista o bafo denunciava-lhe. A tragédia correu com o chão da ponte molhada direto à correnteza do rio. O Diabo imediato lançou a corda das brincadeiras de rio de dias de sol. Nadou com seu corpinho a puxar braços e pernas para as pedras às margens do leito. O Diabo, pobre diabo, nem saberia quantos salvou. E os braços fraquinhos, a fome turvando-lhe a vista, a água transbordando seu caminho e ninguém lembrou de a corda puxar, naquela noite de alegria e nascimento, onde se agarrava sem forças o Diabo a acenar. Cansou-lhe a alma de ser invisível e submergiu no turvo do rio enlameado com a chuva que o abençoava, enfim.

Noite de Natal

Naquela noite de Natal não havia nenhum pacote de presente debaixo da árvore. A mesa grande decorada com uma toalha cheia de bonecos de neve e papais noéis não ostentava nenhum enorme peru. As caixas de som não entoavam os mais belos cânticos natalinos. Nem o pisca-pisca estava aceso. Era um Natal onde faltava paz. Faltava que as pessoas acreditassem no futuro. No próximo Natal, caso tudo continuasse igual, o passo seria nem ter árvore a ser enfeitada. Os corações mantinham os adornos, apenas. Corações adornados não preenchem espaços. Viam-se invejados, pelo lado de fora. Sorrisos não pendiam dos galhos da árvore decorada no meio da sala. Crianças não enlouqueciam o chão com seus novos brinquedos. Cachorros e gatos não detestavam suas roupinhas vermelhas inexplicavelmente cheias de pompons brancos.

Naquela noite de Natal o entorno da mesa farta era ruidoso. Diriam que todos ali se entendiam. O churrasco de sempre passava de mão em mão. As caixas de chocolate já abertas descansavam no balcão. As crianças disputavam a vez na bicicleta nova da prima mais afortunada, logo estariam agarrando-se pelos cabelos. Todos suavam e o ventilador não dava conta do ambiente abafado. Uns disputavam conquistas do ano, outros discutiam a agenda da casa compartilhada na praia. A maionese seria pouca, é fato. A tia nunca acertava a quantidade. Ou sempre apareciam os que ninguém esperava. A família, já grande, crescia tanto a cada ano! A árvore-de-natal de plástico não chamava atenção no canto escuro, perto da porta do banheiro. E um papai Noel vesgo tilintava seu sino até acabar a pilha, para ver se a neta recém-chegada pegava logo no sono.

Naquela noite de Natal eles nem sabiam ao certo que era… Natal. Os tubos de oxigênio, as macas, os sacos de soro silenciavam a noite feliz. Um laço vermelho na mesa da recepção queria lembrá-los – em vão. Os lençóis brancos e os horários cumpridos à risca não queriam emular a neve nem preocupavam-se com a ceia. Havia um silêncio descomunal pelos corredores que pareciam ainda mais escuros. Nem as almas perambulavam naquela noite. Um ou outro era visto num canto a bocejar e esfregar os olhos com a mão adormecida de dormir meio sem jeito na cadeira. Todos torciam para que, até o fim do plantão, a sirene da ambulância não tocasse tal qual o sino do papai Noel.

Naquela noite de Natal eu colocaria um vestido novo e sentaria no sofá à espera dos presentes, minguados, por certo, porque não havia sido uma boa menina. Olharia a dança das nuvens depois da tempestade pelos janelões da sala de visitas. Contaria as horas para ver o velho barrigudo e de barba branca (verdadeira) entrar pela porta da frente carregando um saco vermelho. Veria a sala encher-se de gente, sendo, como sempre a primeira a ali estar. Esperaria com ansiedade meu nome ser chamado – uma, duas, várias vezes. Colocaria um presente sobre o outro, empilhados num canto, com medo de que alguém confundisse com os seus ou que se perdessem no meio dos pacotes vazios. O sono chegaria e eu, satisfeita com todos os regalos, abraçada a eles com medo de que eles deixassem de ser meus, partiria para a cama.

Naquela noite de véspera de Natal o cansaço levou-me tarde para a cama. Os olhos demoravam mais em cada piscada. O ventilador tornava o quarto fechado atrativo. Eu esperava por você. Esperava ter mais esperanças e fé no futuro. As pernas doíam pelo andar desenfreado da correria das compras de Natal. Pensava na praia, em pular para o Ano Novo, em como era bom que Natal só havia um por ano. Quando seria mais difícil te esperar, você apareceu. No portão de casa, você reclamava pelo meu colo. Talvez o coração aos pulos ou eu nem sabia ao certo. O Natal agora fazia sentido. Eu te esperaria, sempre. Sem sono, sem cansaço. Para ver teu sorriso, enxugar tuas lágrimas, dar-te abraços. Em nenhum Natal, até hoje, eu havia recebido o que mais desejava. E, ali estava, tua presença. Ao voltar, pé ante pé para não esbarrar nem no papai Noel que dizem que sai da chaminé, desliguei as luzes do pinheirinho, tirei o vestido embebido no teu cheiro e adormeci a sorrir com o melhor presente da minha vida.

O alguém e a moça

 

Refreou as vontades, que era pessoa disso: de vontades. Mimada, diriam. Filhinha de papai (ah, se soubessem). Namoradeira, segundo as más-línguas. Dizem, porém, que mães sabem das coisas. E sabem mesmo. Pessoas de vontades, eu diria, são as melhores pessoas. Não deixam nada a dever, não arrumam escusas, não titubeiam (ou bem pouco e a gente nem percebe). Assustam, por certo, pois sorriem quando querem sorrir, desejam quando querem desejar, amam quando querem amar, desaparecem quando querem desaparecer. Mas, naquele dia, deixou as vontades quietinhas no balanço ao lado. Era amarelo, se não estou enganada. Pessoas detalhistas são assim.

Foi quando alguém entrou na sua vida. Esse alguém cedeu às suas provocações: não sabia que não se cai nas provocações das pessoas de vontades? Descaminhos irreversíveis, querido alguém. O alguém, porém, era desconfiado. Desconfiava da moça do caixa, coitada. Desconfiava, dizia, dos outros. Na verdade, a moça das vontades, também desconfiada – foi o primeiro ponto em comum; um tanto incomum, não? -, desconfiou que o alguém desconfiava era de si mesmo. Ufa, tanta desconfiança – e eles confiavam um no outro e nem sabiam.

O alguém, um improvável sedutor, seduziu a moça das vontades por longas caminhadas – que de bobo não tinha nada, mas era assim que por vezes ela lhe chamava. Caminharam por praias amadas, por paisagens de lindos morros em promessas de companhia e de passeios de trem. Ousaram caminhar por costões e foram seus primeiros gemidos – de dor. O alguém e a moça tinham passado: que se via no brilho opaco dos olhos e no tremor dos lábios no escuro. O passado, sempre digo, lá no seu lugar deve ficar. Mas quem sou eu para dar palpite, eu só observo. Não lembro bem como foi, o alguém se abria, a moça se distanciava – essa gente de vontades, quanto mais vontades têm, mais teme tê-las.

O improvável sedutor levou-a em busca de bancos simpáticos em praças vazias e em recantos de lagos inóspitos pela cidade. O alguém queria levá-la a lugares bonitos, a moça não tinha boas intenções. E perderam-se em carícias desconexas. A moça falava muito, que até vontade de falar lhe sobrava, o alguém só permitia que se falassem nos breves sinaleiros fechados. E encontraram-se em histórias distantes.

Tem dias que a moça só quer um abraço. Mas precisa de uma palavra que nem sabe, uma palavra de apoio, de incentivo. E só o alguém sabe dizer as palavras que ficariam sob o breu do espaço. As pessoas dirão que conhecem a moça, sabem da sua preferência por maçã, goiaba e melancia; mas só alguém saberá onde ela deseja estar agora. Tem aquelas pessoas que convivem com a moça, todo dia, o dia todo. Ou aquelas que puxam assunto diante do cesto de abobrinha da verdureira. Só o alguém manda mensagem dizendo que a quer mais do que a caldo de cana com pastel – caldo de cana com pastel, meus queridos, não é por qualquer um que se troca esta dupla. Podem até cozinhar milho para a moça, mas só alguém a leva para sobrevoar os domingos nas asas do querer sob morros nublados e rios alastrados.

E foi num sábado, promessa de banco da praça do mercado. A moça aguardava e feliz já estava quando o alguém de vez entrou na sua vida. Entre tremores e sorrisos – ela jamais esqueceria aquele sorriso – perderam-se em abraços. Tinham promessas a cumprir, poucas não são. E a moça quis retribuir, que ela ainda sufoca-se em vontades – mas insisto em dizer-lhe que as pessoas de vontades são as melhores, ela não me dá ouvidos, pois teimosa. Mares bravios os acompanharam, os dias se arrastaram, viam-se unidos em um estalo. E gostavam-se de viver em abraços. Eu que não sou chata de querer avisar nem nada, mas que eles não tinham volta, eu sabia.

Alguém é essa pessoa que te rouba as horas – amada em verso, prosa, fotografias e canção. A moça, bem, da moça só posso dizer que é pessoa de vontades. Dos encontros improváveis, na vida, temos os melhores convívios. Tudo o que vem pelo óbvio certo está que termine. O alguém é o teu convite irrecusável, a falta ao longo dos dias intermináveis. Mães querem a melhor das moças para os seus filhos, mães sabem quando há um alguém na vida das suas filhas. O alguém e a Moça se espantam que de tanto conversarem ainda há muito a se falar – sempre. E são, um para o outro, a primeira pessoa que eles tanto esperaram.

Agora ela só quer refrear o tempo quando estão juntos. E nem é a única culpada, porque o alguém a observava com seus olhos perspicazes enquanto ela sentia um coçar de leve atrás da orelha. Nenhum dos dois se arrisca nos cálculos, e eu digo que o fazem muito bem. Mas subtraem dias, somam meses, guardam semanas. Se lhes vissem, ficariam admirados: e não brigam? Pois não. Eles fazem do jeito deles. Quando embarcaram na estação, optaram por deixar as bagagens, tirar os anéis, as carteiras, os objetos de valor, e até os calçados. Por pouco que nem seguiriam com a roupa do corpo. Mas avisei que parariam atrás das grades e não no paraíso.

Fizeram planos noite passada – ouvi de longe e sorri satisfeita. Riscam calendários e entrelaçam-se em convites para aniversários, casamentos e datas festivas. Nem sabem se atravessarão o próximo fim de semana, mas quem seria eu a toldar-lhes a visão com a prudência? A moça empenha-se em surpresas, o alguém provoca-a com mistérios. Parece-me que, dentre o risco das promessas, só terão a cumprir algo em torno de mil beijos. Achei por bem não comentar que foram sábios, ao menos nisso. O alguém pediu-lhe livros emprestados, a moça cobiça a praia perto de onde ele mora. Não se enganem, os corações andam juntos nas letras e nos mares…

Estimo-os muito, não custa dizer. Fizeram-me acreditar que até os solitários têm chances nesta vida. Ou que as curvas da vida podem se encontrar muitas vezes, nas quais o alguém e a moça estiveram tão perto e mal entreolharam-se, e só Deus sabe porque e quando desaguarão de vez no mesmo leito cansado de um rio caloroso. São coisas de Deus, quem sou eu para me meter.

Forasteira

Quando cheguei não vi o mais óbvio. Ou, pior, não quis ver. Chamavam-me forasteira e eu achei bonito – sem atentar ao certo as razões. Pensava num western e seus montes de feno ao vento nas ruas empoeiradas, uma dançarina com a cara (e o corpo e a voz) da Marilyn Monroe sentada sobre o piano do saloon entoando dores de um amor abandonado e à espera do seu happy end nos braços de um bonitão rústico. Forasteira eu sorria. A cidade tinha um quê de western, abandonada, velha, atrasada. Eu tinha tudo de forasteira: não era dali, dali não me sentia, me olhavam de alto a baixo, mantinham-me à distância, não gostavam da minha conversa nem do meu olhar. Novamente, preferi não ver. Eu não pertencia àquele lugar. Pertenceria a algum lugar? Instigava-me este ideal de pertencimento, um útero imperfeito onde, de olhos fechados, as pessoas sentiam-se no “seu lugar”. Existiria tal lugar, no meu caso? Forasteira eu me isolava. A vida ali em meio a cavalos amarrados nas portas dos comércios e mocinhas desocupadas a futricar nas janelas em nada me atraía. Era uma gente de mentalidade mesquinha. No meu rancho eu me retirava com meus livros e palavras. Nem de companhia eu precisava. Raras vezes me viam a circular de botinas grosseiras e pistola na cintura e aos poucos as ruas se esvaziavam. Não queriam conversa – eu nem os olhava. Via aquela gente presa às roupas e convenções dignas de outro século. Ah, o tempo ali não dera as caras! Enquanto ele escorria-me pelo corpo em dias de eterna chuva. Descobri, como se realmente não o soubesse, que naquela cidade os invernos eram longos por demais. E fazia frio até em novembro. Vivi dois invernos inteiros com o coração adormecido e as idéias a cogitarem me acordar daquele sonambulismo pérfido. Queriam-me, as idéias, longe dali a cultivar novos pomares, a plantar novas hortas. O coração ansiava que lhe deixassem quieto, fosse naquele rancho ou em qualquer outro. Sentada na varanda com os pés na amurada nos poucos dias ensolarados, eu ignorava-os todos. Revestia-me da couraça de forasteira, entre os meus e entre os olhares irrepreensíveis da cidade, e mantinha serena minha vida de solidão. Ouvia os cochichos, as perguntas, porém. Permitia-me ignorar todo o meu entorno. Ouvia, ao longe, a voz da cantante do saloon. Talvez ela também uma forasteira. Talvez ela angustiava-se que o seu bruto a levasse para longe dali, onde jamais bêbados fétidos reconheceriam o seu talento. Nem com meu talento eu me importava mais. Nem com o reconhecimento. Importava-me com a cama pronta à noite, o silêncio que me despertava os pensamentos, a ordem das coisas no vazio pelo qual eu – sem saber – havia optado. Não sabia se era passageiro, se forasteira seria, de novo, em algum outro recanto do mundo. Certo é que ali permaneceria. Forasteira eu segui. E em pouco tempo as cavalgadas pela aridez do deserto capturaram meu olhar para outros horizontes. Fui despertada pelo movimento sutil de uma árvore solitária na imensidão, por diligências que traziam notícias de longe. A roda gigante do mundo acordava-me. Talvez impelida pelos pesadelos que agora me acometiam no dia a dia que antes fora tão passadiço. Forasteira eu mirava novas emoções. Ainda que fossem as mesmas de outras vezes. Certo é que nem dois invernos me fizeram querer ficar ali, pertencer àquela terra que fora dos meus antepassados, onde eu deveria sentir-me ligada inefavelmente ao futuro. Aquelas caras que torciam-me o nariz eram apáticas e falsas. Ignoravam o doce lamento da moça do saloon. Forasteira eu sentia o calor na cama a impelir-me a sonhos inauditos. Fazia-me promessas. Ocultava meu desprezo por aquela gente que fingia aceitar-me forasteira nas minhas largas calças jeans e no meu colete puído. Eu sabia as artimanhas deles quando jogava despreocupada o velho chapéu sobre os olhos ao meio-dia de um sol de quebranto. Não arquitetei os próximos movimentos, foi meu erro. Forasteira ali e em qualquer lugar seria. Abandonei-me aos azares da vida, tal qual a cantora do saloon que envelhecia sob a maquiagem escorrida. Todos os dias passava perto da estrada que para outras paisagens, quem sabe um dia, me levaria. O cavalo inquietava-se sob a sela e eu lhe dizia um breve “hoje não” e quando o hoje seria? Acordava cada dia mais tarde, almejando que mais rápidos eles passariam, dormia, sem sonhos, na secura dos finais de madrugada ao ouvir os últimos acordes do piano do saloon ao longe – quando quase rouca e tão triste a voz da dançarina bailava meus desejos mais evidentes. Forasteira eu sorria. Tínhamos, eu e a Marilyn Monroe da cidadezinha pobre, colona e mesquinha, a mala sempre pronta atrás da porta do quarto.

Comício em alto mar

Tudo o que o mar traz. Como a gente, quando está num torvelinho de humor, reviramos a areia do fundo, deixamos a água turva, todos os destroços de outras enseadas e baías vêm parar na nossa praia favorita, na mais bonita, naquela onde amamos tomar os mais doces banhos. O mar, nesses dias, destrói o asfalto das praias mais atraentes, como aviso dos seus desgostos joga impensáveis toneladas de areia na nossa cara, no meio do nosso caminho. A água do mar faz o trajeto inverso, avança pelas ruas, entra em bueiros e sem chance volta a si mesma, numa revolta sem fundamento, sem maiores prejuízos a si mesma.

As correntes marinhas, mais fortes que nós, arrastam enormes galhos e troncos de árvores de outras margens de rios que também têm seus dias de raiva. Restos de embarcações, animais mortos, corpos de náufragos. Não há o que resista a elas, melhor sempre desejar nunca deparar-se com uma, é o que se diz. Somente as ilhas permanecem. As praias mudam suas linhas de areia, sua balneabilidade. As ruas cedem. As árvores têm suas raízes expostas. Os bancos à beira-mar por ele são engolidos. As ilhas não mudam nem se assustam. Elas resistem às mais bravas tempestades, às ventanias regozijam-se, não temem os picos de maré nem as fases da lua. Como a gente, quando sobrevivemos à vida.

O mar não parece importar-se com dias nublados. Nem com ficar menos bonito sem o sol a emoldurá-lo. Talvez só lá naquele ponto onde o mar e o céu se encontram – onde nunca estive – algo de mágico aconteça: tenham alguma discussão acalorada, uma intervenção filosófica. Diante de nós, eles não comunicam suas inquietações. Só o vento abandona-se a revolver a ambos. Encrespa um, limpa o outro. O vento, como se sabe, é um malcriado: levanta as nossas saias, leva a poeira para dentro das casas, despenteia-nos. O vento é como a gente de alma incerta, não gosta das coisas no lugar – por vezes ele fica quieto, na sua, mas logo não consegue se conter e sai revirando a vida da gente. Ninguém gosta do vento, correm fechar portas e janelas, já de cara feia a maldizê-lo.

E tem dias que eles todos se unem num amplo comício. Aguentarão firmes, as ilhas. É preciso estar precavido. Eu diria que é preciso ter sua ilha. Mas de nada adiantará se não souber reconhecer os sinais: o alinhamento dos astros, os horários das marés, os eventos climáticos extraordinários, a direção e intensidade dos ventos, o cheiro do mar a sentir-se ao longe. Sem percebê-los, não chegarás à ilha em tempo de salvar-se. E os danos, por certo que os sentirá. A tua ilha, porém, ficará vazia de ti, lamentando que não tenhas aprendido nada – como a gente que tanto apanha da vida e não sai do ringue antes do último assalto.

Dias depois, voltará a calmaria. As resoluções do encontro, porém, se manterão. Muitos correrão atrás dos prejuízos a limpar e enterrar destroços. Pouco tempo bastará, quem sabe até o final do mês, para que ninguém perceba que por ali passaram todos eles em rebuliço a mostrar que há, sempre, algo mais forte e poderoso que nós. Fingiremos que não ficamos ilhados em meio à água marrom jogada em ondas altas e repletas de mato e areia, galhos e pedras, sobre o asfalto que resistiu somente até dali sairmos com alguma apreensão – e um tanto de frio que nos alcançou pelas frestas. Às ilhas é imprescindível tê-las, mantê-las, cultivá-las, conquistá-las; e lembrar-se que elas são ilhas e não sairão a te buscar – tu é que precisas ir até elas.

Ame o poeta

Você pode amar um engenheiro. Há tantos, eu sei, servirão para arrumar o chuveiro (nada pior do que ser deixada na mão por um chuveiro), os Engenheiros Elétricos – uma amiga mesmo, casou com um, disse que era uma maravilha em casa. A média salarial dos engenheiros também é bem boa, segundo dizem – as amigas aí que gostam de sapatos caros e preferem ficar em casa a trabalhar. Nada contra sapatos, até tenho uns. Mas eles estragam, ficam fora de moda (que as mulheres gostam de andar na moda, eu sei).

Você pode amar médicos, dentistas. Bancários, quem sabe. Empresários. Trabalham bastante, vivem ocupados e cansados, talvez. Uma amiga, agora, ama um político. Um político, vejam vocês. Tenho amigas que só amam músicos. O cara não pode chegar perto de um violão que uma coisa acende dentro delas. Inexplicável. Gostam das noitadas, de música, das serenatas, quem sabe. Mas alguns desses músicos são advogados, concursados de repartição pública. Vejam vocês, há quem ame advogados! Ah, o amor…

Você pode amar até professores. Trabalham demais, recebem pouco, segundo dizem, vivem preparando aula e reclamando dos alunos sem educação. Uns loucos neuróticos e chatos, por vezes. Mas você pode amá-los. Você pode, inclusive, amar policiais e motoristas de ônibus. Tem quem gosta de viver aflita com a segurança dos seus amores. Eu já amei um vendedor de caldo de cana. Pelo caldo de cana grátis, certeza – e vocês viram que aumentou o preço do caldo de cana? Conheço quem ama cozinheiro – ou chef, né, agora todos são chefs – e já não poderia ser o meu caso, nem o de muitas de nós, pois engordar é sempre um problema.

Você pode amar o caixa do supermercado e nunca mais enfrentar filas. O marceneiro, que te fará a cozinha sob medida mais linda deste mundo. O enfermeiro, qualquer febre será rapidamente resolvida. O contador, já pensou? Amar um contador deve ser numericamente emocionante. Ou você pode amar um bibliotecário – será um amor em ordem alfabética, ou por assunto, ou por autor? O chaveiro, amá-lo há de ser uma salvação em momentos de muita angústia – ele abre portas, veja bem.

Eu, porém, diria para amar o poeta. O poeta arquiteta as palavras, mas o melhor poeta redesenha emoções. Ele não conversa contigo, ele te leva por longas caminhadas. Ele verá em você tudo o que foge aos olhos alheios. O poeta tem uma visão perspicaz do mundo a te surpreender todo instante. Os sapatos ficam velhos em pouco tempo, saem de moda, mas os versos são eternos – no papel, no coração e nas lembranças, mesmo que você não seja de decorar versos, como eu. O poeta dá sentido aos mais ínfimos detalhes da vida – e a vida, em si, só assim torna-se vida. Talvez o poeta não saiba arrumar o teu chuveiro – certeza que pode lavar a louça e recolher a roupa do varal – nem fazer a massagem que você precisa depois de um dia exaustivo, mas só ele pode te entregar as belezas e doçuras da vida na cadência do sussurro ao pé do ouvido. Ou por escrito, pra você guardar e ler a toda hora do dia seguinte. O poeta é o único que poderá te curar das doenças e tristezas da alma, creiam-me. Ame o poeta. Amá-lo é ver o mundo mais laranja no entardecer de uma quinta-feira de temporal no final de tarde, enquanto sonhas com a sexta-feira – porque hoje ainda não é sábado.

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