Matéria-prima da criação

Eu li um artigo no qual o autor procurava as origens do desejo de criar que tem o ser humano. Seria algo estritamente humano e uma extensão do nosso corpo, como a roda, o pincel, etc.. Criamos coisas úteis, que potencializam nosso corpo e nosso intelecto. Mas, por outro lado, não criamos somente coisas úteis como um martelo, criamos, também um poema, que, a princípio, não tem utilidade alguma. Um filme, por exemplo, ou uma sinfonia, como ele cita, não têm utilidade.

Ele, então, chegou à conclusão de que criamos para dar sentido à vida, citando Gullar. Porém, o que me incomodou foi a afirmação de que somos pequenos, muito pequenos (houve uma insistência dele neste ponto) e que a vida precisa desta dimensão – que, se não a arte, somente a religião pode dar. Somos pequenos? A vida não faz sentido sem a arte?

Eu queria começar dizendo que não somos pequenos. Nem a vida precisa de nada, nem arte nem religião, para ter sentido. Criamos para preencher vazios. Consumimos arte e religião para preencher vazios. Talvez tenhamos tantos vazios que não temos coragem de assumir que isso se dá assim. Não passamos noites em claro assistindo a um capítulo atrás do outro de uma série do momento porque aquilo dá sentido à vida, mas sim porque temos uma vida vazia que, naquele momento, em vez de ser preenchida com uma boa noite de sono (ou, vá lá, tantas outras coisas) está sendo jogada fora com histórias e personagens que não fazem parte da nossa vida. Adolescentes que passam dias trancados no quarto lendo freneticamente estão na mesma situação, é um momento de entretenimento que se exaure na fuga da própria vida.

Faço, então, uma apologia à inutilidade das artes? Óbvio que não. Mas me parece que o autor do artigo tem essa verve tão clichê academicista niilista (o niilismo em si é tão blasé e clichê) de desfazer o valor intrínseco da vida, de não vê-la na sua maravilha e beleza, de superestimar os livros, filmes e músicas. O que criamos existe – ou deveria existir – como extensão desse encanto que há na própria vida. Consumir arte deveria ser a possibilidade de explorar mais o que sentimos na vida e um momento de entretenimento (de qualidade, por que não? qualquer um pode ler Shakespeare por mero lazer). Jamais criar ou consumir criações deveria ser considerado superior a viver.

Justifica-se, assim, também minhas ausências. Há muita prosa e poesia na vida. Há versos em conversas à beira-mar e fotografias de faróis. A crônica, em si, é a mais direta expressão da vida. Muito mais que os romances ou filmes de super-heróis. O problema é que, por vezes, temos muitos vazios. E não é preenchendo com a arte que deixamos de tê-los. Só a vida é capaz de dar sentido à própria vida. Não há filósofos nem prêmios Nobel que nos façam viver e sentir o que só a vida nos proporciona. Não há arte alguma que seja superior à vida, em nenhum sentido – e, vejam bem, não é a vida a matéria-prima da arte?

Eu gosto da idéia de discutir as razões ou motivações que nos levam a criar (também aí a questão de preencher vazios…). Como discutir quais os mecanismos que nos levam a consumir, talvez de mais fácil compreensão. Mas nessas discussões esquecemos de discutir a vida em si, de valorizá-la adequadamente e fugir ao supérfluo vazio corriqueiro de um mundinho pós-pós-moderno que aniquila vidas em cubículos sufocantes e pessoas cada vez mais afastadas umas das outras – e, no máximo, próximas dos seus psicólogos e personagens favoritos.

O mês finda

 

Respira

o ar nos afasta

inspirações relutantes

ao dizer-te que o mês finda

A semana começa num domingo

entre encruzilhadas e pautas

vazios o quarto e a sala

clamo aos céus

é sexta?

 

É a noite

o jardim solitário

a chuva interminável

o abajur apagado

os sonhos em vão

o frio calmante

 

Pergunto-me

amanhã será outro dia?

Os 7

Esse mundo imenso

que rescende o teu peito

te diz o calendário

o quanto eu queria

estar contigo?

Era o balanço colorido

o abraço tão aguardado

e depois nem sabia

qual fora o dia

– cheguei, porém, no horário

Todo dia é o quadro que vejo

onde surge: o teu sorriso

É hoje que tanto demora

é sábado que passa rápido

e o vinho desaba

sobre nossos ombros

a apagar o passado

Te disse? Ou não?

Eu só sei amar

à beira-mar

dou-te a mão

e o olhar:

o entra e sai dos navios

no porto e o vôo

das garças em alvoroço

a conversa no almoço

o mar revolto, a chuva

torrencial e o nosso sono

Ao meu lado, te quero

companheiro em estradas

de chão e na areia da praia

a rir das crianças

e nos desvios do caminho.

A (ex)república

Cantavam boas novas: era do outro lado de um outro mundo. Por enquanto aqui nuvens sombrias atarraxavam o nosso futuro. Mãos gigantes suprimiam as intenções e no outro dia de manhã nós é que tínhamos que levantar para trabalhar – amanhã, mesmo. Interesses sempre regeram os grandes – os estadistas, os heróis, os milionários, enfim – e neles não couberam nunca os nossos, essas pequenezas de vida digna, boa, acesso ao que precisamos e, bem, o básico. Diria que interesses envenenam a alma. Se sobrepõem ao amor, embaçam a visão.

Não víamos, também, é fato. Interesses cegam, de todos os lados, em todas as classes e situações. Meu interesse de vida digna não é menor que o seu de tráficos vários, e o defenderei com a mesma ferocidade. Me aguarde. Alguém sairá ganhando, sempre. Não temos, fica claro, interesses em comum. O teu bem não é o meu bem. E assim persistiremos nessa guerra vil e inválida, destruindo uma nação, um povo, um caminho em comum. Uma saída para tempos tão sombrios. Enquanto cada um morrer abraçado ao seu interesse. Enquanto cada um escolher um lado – diante das escolhas que já fizeram por nós.

Tentaria dizer: pensemos (com calma). Em vão. Pensar não é o forte do nosso povo. E não temos perspectiva de boas notícias – pois elas já vêm determinadas, agendadas, gravadas e provadas – porque somos o meio desse comércio todo no qual transformaram um país que poderia ter sido – e não foi, quiçá jamais será. Passou da hora de acreditar no futuro. Passou da hora de crer em líderes salvadores. Amanhã (restam poucas horas do hoje, mais um hoje que não nos valeu bem) teremos que levantar para trabalhar. Ninguém nos pagará mesadas enquanto estivermos presos. Ninguém nos mandará mochilas com quinhentos mil.

Amanhã. É o que nos resta: esperar pelo amanhã. Esperar pelo trabalho a ser feito – da melhor maneira possível, com um sorriso no rosto, de preferência -, pelo salário a cair na conta, pela preservação da vida num caos social, pela saúde que não nos faça passar por humilhações. Imprescindível não é esperar, é fazer o seu tanto, plantar e colher. Cuidar do nosso jardim. Era o que eu pensava hoje ao tirar os galhos secos dos pés de morango, ao regar o cacaueiro, a arrancar as couves secas. Precisamos cuidar mais e melhor dos nossos jardins.

Visto lá de cima, talvez uma revolução de jardins bem cuidados contamine os jardins que estão apodrecidos, tomados de erva daninha e de bichos predadores. Talvez os que não cuidam dos seus jardins e os deixam tomados por mato alto e pulgões sintam vergonha das suas práticas diante de tantos jardins com plantas e flores bonitas, árvores vigorosas e sadias, sem desleixo em combater ataques de insetos. É no que eu acredito. É o que eu faço – e, talvez, esqueçamos daquele ditado “faça o que eu falo, não faça o que eu faço” porque a imitação é umas das formas de apreender este mundo. Que este, o mundo, seja melhor. Que todos nos preocupemos em cuidar dos nossos jardins.

Mesmeriza

Preciosa certeza que tens

entre o peito e as mãos

que tecem teus vãos

de silêncios e lágrimas

Vadia tua crença

de que não mudaste

com os dias de frio

amparados na solidão

Mesmeriza um porvir

que abominaste outrora

corre, foge à armadilha:

são sonhos de oásis

Repara na idade da alma

que trocou-te a roupagem

por translúcidos vestidos:

andas devagar e leve

 

que te invejam o nascer livre do sorriso

e o livre do corpo a amar sem peso.

Penitência

Era pra ser melhor. Mas, dizem, só temos essa vida. E é dela que temos que fazer – não tirar – o melhor. Às vezes dá mais trabalho, raramente quase não depende de nenhum esforço. Eu começo aqui e em duas linhas quero desistir, pois cansaço, sono, uma certa tristeza me invade. Mas o caminho trilhado é sempre longo. Não se chega a nada bom em dois curtos passos. E amanhã nunca é uma certeza – pelo menos, até o momento, tenho certeza que não conseguirei tempo para terminar e publicar este texto, portanto, é melhor que o faça agora. Enquanto escrevia a frase anterior me veio à memória a imagem de um sonho que tive, faz tempo. A cabeça funciona assim, sempre tão mais rápido do que esses dedos que deslizam céleres pelo teclado ou ainda mais veloz do que este corpo que implora por cama – anda viciado, eu diria. O sonho, só para esclarecer, não tem nada a ver com o que se passa agora: talvez apenas saudade de dormir, ou de sonhar, ou uma sinapse fora do lugar.

É pra ser melhor. Tem que ser. Sem nenhuma obrigação, que fique claro. Tem que ser porque queremos que seja. Queremos que seja melhor para nós. “porque merecemos”: não chegaria a tanto. Porque, pelo bem e pelas boas ações, temos que fazer o melhor. Não cabem acusações ou discussões. Há o reto a seguir sem desvios. Eu lia esses tempos uma crônica do Saramago, que me fez uma bela companhia, na qual ele falava de como o escritor dá vida ao entorno dele, ao escrever. Como um mundo surge, e aqui solitária neste oficina frio e mal iluminado, e preenche minha visão de mundo – a qual eu dissemino porque as gavetas são poucas e já estão cheias. Talvez ele falasse também disso, dos autores que não são publicados. Ou li naquele jornal de literatura, agora estou confusa. (perdoem, passa das 22h e a cabeça a rememorar sonhos, a desejar sono) Mas, vejam, extraordinariamente há uma anotação aqui que comprova a ligação destes dois pensamentos. É em um bloco que eu deveria carregar comigo – estou, novamente, tentando.

É melhor. Não preciso me enganar, é sim. (tomei um chá de cidreira e laranja, acordada por milagre no momento – daqui a pouco transcrevendo sonhos ao vivo) É porque começou diferente. É porque eu, finalmente e pela primeira vez, estou disposta (e me empenhando, juro) a fazer e ser melhor. Só por isso já valeria, mas não basta. Sou exigente – todos concordam. Dizia lá o Saramago que o cronista é chato, e nada mais chato do que a cronista ficar falando em sono (contagioso, só pode, tomem cuidado) a toda hora. Somos chatos porque evidenciamos o que ninguém quer ver. Porque pegamos o sono e trazemos para o meio dessas páginas enquanto acreditamos que devemos ser melhores – dando o exemplo, diga-se de passagem. Anotei aqui que o Affonso não é um cronista chato, mas, me desculpem, não sei qual a associação que eu fiz no momento da anotação (por isso que não consigo manter o hábito da caderneta de anotação, as idéias não funcionam depois). Talvez tivesse algo interessante a dizer. Leiam-no e depois me digam se vocês entenderam qual a minha idéia, mas antes leiam o Saramago. Há algo, eu garanto.

Acabo de fechar a caderneta (e colocá-la na gaveta quando ela deveria ir direto para a bolsa) e nela ainda há, pelo menos, umas três idéias de texto – uma descartada, pois o tempo condena ao desuso as mais prementes necessidades. Senti falta de escrever. E é – sempre – preciso escrever. Sempre e sempre. E nem é o tempo. Nem a falta de idéia (nunca). Ou o vazio da experiência (jamais). É minha falta de compromisso. Condenada e julgada. Minha penitência é o próprio crime. Avisem que voltei e nunca deveria ter me ausentado, eu sei. E é nesse turbilhão que a vida segue (e é como eu gosto que ela seja). E que estamos bem. E que sejamos melhores.

Só benção e reza!

Eu diria que dá para sentir no ar que se respira, porém é justamente como se trancasse as narinas. Ela quer matar, sufocar, humilhar – não há um pingo de humildade nas suas intenções. A maldade percebe-se no ar: escorre pelas paredes de pequenas salas e contamina o sangue de grandes famílias. Ela move as decisões de estadistas das maiores nações. A maldade, meu filho, revive no creque do pisar numa inocente barata.

Queria também poder dizer que dela é possível proteger-se: só benção e reza, para os que crêem, e olhe lá! A maldade não se impõe limites e é difícil dificílimo contê-la entre leis e tarjas preta. Porque é instintivo, o ser humano é o único animal que age instintivamente para fazer o mal aos seus semelhantes, pelo puro prazer ou por, simplesmente, prejudicar, fazer sofrer, lucrar algo com a maldade. Não é só para disputar a presa ou a fêmea (como diz a canção) que causamos voluntariamente mal ao nosso igual. É para vê-lo sofrer. É para sentir-se superior. É para destruir sua integridade, sua paz, sua família, suas posses, sua felicidade. É esta maravilha, o animal humano.

A maldade é pegajosa. Haja banho para limpá-la das nossas almas. Porque ela contamina, nos deixa doentes, desvirtua nosso dia e nossas ações. Sempre foi e sempre será mais fácil ceder à maldade – vai de você preferir o difícil na vida, ou simplesmente agir pelo que é correto. Fazer o mal ao próximo – nem precisa ser cristão, convenhamos – é inaceitável. Regozijar-se com a maldade deve ter explicações psicológicas, psiquiátricas, quiçá científicas. Humanas, jamais.

Talvez o amor cure. Há casos em que o amor pode curar um coração tomado pela maldade. Ele age assim porque não é amado, ou porque não aprendeu a amar, ou porque conviveu tempo demais sendo mutilado pela maldade alheia. Ou algum outro ou. E amar essas pessoas más é um dever (kantiano, por certo). É preciso amá-las para que elas percebam que o amor é mais, é maior do que o que elas têm oferecido ao mundo. Porém, deixem-me dizer-lhes: há casos em que o amor não basta. Há pessoas que não sabem (ou não querem, ou ou ou…) receber amor. Há pessoas para quem o amor é uma falsidade, uma superficialidade qualquer que não lhes enche o coração, não lhes corre nas veias nem lhes abre um sorriso. Aí não há amor que dê jeito e só a distância resolve.

Amar não é, por sua vez, nada fácil. Nem é para todos, sejamos francos. Amar é doar-se – e nem todos conseguimos. Talvez, apenas talvez, por isso tantos se encaminhem para a maldade. O mal pensa em si mesmo; o bem sabe que o amor é por e pelo outro.

Não passa nem passará

Alento

é o tempo

passou e eu quis fugir

dobrou esquinas

respirei em descompasso

Alento

é a solidão

ficou e eu quis sumir

varou noites

tomei indecisões

Sem alento

é a roda, gira

e a tarde e um dia

e nada se desvia

nem se nega

Sem alento

é o mesmo guia

e o que não devia

e sigo perdida

foi-se a vida

Dia de folga

Hoje não é dia
do trabalho
nem do trabalhador
Hoje quem não tem folga
é o amor

O amor que tece
o sofá em cores de riso
e a cama em suspiros

Hoje a folga é nossa
folgo em saber:
és meu tempo
sou tua pauta

O amor reverbera
as paredes da cozinha
do quanto me vale
ter tua companhia

Hoje é feriado
para a distância
para os dias da semana

O amor acampou
na chegada do frio
entre música ao longe
e perigos de cidade grande

Hoje somos nós
por todos os hojes que virão
em dias primeiros ou 26
por todos os nós
que desataremos – juntos.

Fuga intermitente

Nas ondas se desfaz

um devaneio

em crise e pêlo

de corpos cansados

A água amortece

o tempo da angústia

dura aqui eternidade

e um fim se alastra

como quem não quer

deixar de lutar

o sopro, a vida

Seria possível

fechar os olhos

imergir as preces

em sons de ondas

e dar passagem

ao esquecimento?

E assim escorre

cada pingo e nó

e água sem cheiro

nos dias de peso

e pressa e pés

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